Violência Política no Brasil: quanto vale a vida de parlamentares negras e trans?

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O Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) faz um chamado urgente aos mecanismos de proteção de direitos humanos internacionais, diante do crescimento da violência político-eleitoral que vem assolando a segurança de parlamentares trans e negras no Brasil, seja em suas vidas cotidianas seja no exercício de seus mandatos. O iminente […]

Violência Política no Brasil - Entrevista com Gisele Barbieri

O Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) faz um chamado urgente aos mecanismos de proteção de direitos humanos internacionais, diante do crescimento da violência político-eleitoral que vem assolando a segurança de parlamentares trans e negras no Brasil, seja em suas vidas cotidianas seja no exercício de seus mandatos. O iminente risco de morte devido à violência política levou a vereadora trans negra, Benny Briolli (PSOL/RJ), a deixar o país neste mês de maio. A gravidade das ameaças e ataques direcionados à Benny fizeram com que seu partido político buscasse abrigo em outro país para sua segurança.

A atual fragilidade da democracia brasileira põe em xeque os atores políticos que defendem pautas pela garantia dos direitos humanos, sendo a violência política o motor dos discursos de ódio e de disseminação de notícias falsas. É com grande preocupação que observamos que o Estado brasileiro se omite diante das denúncias e, nos casos em que se vê obrigado a responder quando acionado pela imprensa ou audiências públicas, recorre a estatísticas duvidosas, além da tokenização de mulheres, pessoas negras e LGBTI+ para forjar a inclusão da diversidade em seu governo. Porém, a falta de medidas protetivas para esses grupos, por si só, evidencia que não é relevante para quem está no poder cessar a estrutura que alimenta a violência política.

Findado o período ditatorial – que significava uma extrema violência política – o jogo de poder que atravessa o cenário político democrático brasileiro continuou marcado por ameaças e ataques, culminando no assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018. Entretanto, é importante observar que a violência política também foi estratégica para a eleição do Presidente Bolsonaro que, após alegadamente ter levado uma facada, conseguiu mobilizar todo país diante de tal fato. Logo, a violência política é a tônica necessária de um governo negacionista para instaurar a cultura do medo e da repressão.

A política do medo e da insegurança só se faz efetiva quando os representantes da população mais vulnerabilizada são impedidos de exercerem seus mandatos por questionarem o status quo, seja pelas suas plataformas políticas, seja pelos seus corpos pretos que performam o gênero feminino. Desse modo, para um governo que se consolidou nas urnas a partir de um fato de violência política, esse efeito dominó que levou a vereadora Benny Briolli a deixar o país é a ponta do iceberg dos ataques virtuais, da violência de gênero e do silenciamento de uma nação.

Já na era bolsonarista, as eleições 2020 aconteceram em meio a tensões e ameaças políticas e eleitorais. Ainda que em 2020 o movimento negro alcançasse êxito na aprovação do critério racial [1] para divisão de tempo e propaganda política no rádio e na televisão, o discurso de ódio nas redes sociais ganhou força e, segundo a pesquisa realizada pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global [2], o Brasil registrou um ato de violência política a cada 72 horas nas últimas eleições. O cenário político polarizado passou a naturalizar a violência como ‘arma’ coercitiva aos grupos sub-representados e antagônicos.

O relatório “Violência Política e Eleitoral no Brasil: panorama das violações de direitos humanos de 2016 a 2020”, organizado pelas instituições citadas acima, apresenta dados impactantes, como uma média de 27 de casos de atentados à vida de pessoas eleitas ou candidatas por ano. Vereadores e prefeitos estão entre os cargos políticos com mais casos registrados e, como viemos recorrentemente denunciando, o relatório confirma que proporcionalmente as mulheres sofrem mais violência. O Mapeamento Violência Política contra Mulheres Negras [3] realizado pelo Instituto Marielle Franco em parceria com Justiça Global e Terra de Direitos, traz o enfoque da violência política de gênero. De acordo com o relatório, cerca de oito em cada dez mulheres negras nas eleições de 2020 sofreram violência virtual, seis em cada dez sofreram violência moral e psicológica e cinco em cada dez sofreram violência institucional.

Segundo o levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) [4] com candidatas e candidatos transexuais em todo o Brasil nas eleições de 2020, cerca de 50% delas foram vítimas diretas de ameaças, incluindo ameaças de morte, invasões de seu ambiente privado, de trabalho e espaços políticos. Além disso, 38% enfrentaram ataques online e 12% violência física direta. De acordo com a pesquisa, o ambiente virtual foi marcado por “xingamentos de cunho transfóbico, intimidação inferiorizante da condição trans como incapacitante para cargos políticos, racismo transfóbico, deslegitimação da identidade de gênero das vítimas, comentários maldosos sobre a transição e atributos físicos (…), disseminação de fakenews degradantes das candidatas e invasões coordenadas de atividades virtuais de campanha a fim de prejudicar o seu andamento, gerando ambiente inseguro e, em alguns casos, a interrupção por questões de segurança virtual”.

Em vistas de contribuir para a difusão das denúncias que estão ocorrendo no Brasil neste momento, conversamos com Gisele Barbieri, Coordenadora de Incidência Política da Terra de Direitos, e também uma das responsáveis pela coordenação das pesquisas citadas.

R & I – No informe elaborado pela Terra de Direitos, o quadro da violência político-eleitoral já apresentava dados que apontam crescimento de 2016 a 2020. Os dados se tornam mais assustadores após a eleição do governo Bolsonaro, de 2018 em diante. Nas eleições do ano passado, vimos um aumento expansivo dos chamados crimes de ódio, com ameaças e ataques nas redes, principalmente contra mulheres trans e negras. Diante da negação do governo em enxergar e combater esses crimes, você acha possível vislumbrar um fim à violência político-eleitoral contra mulheres no Brasil? De que forma?

Gisele Barbieri – A violência política, como demonstramos na pesquisa realizada pela Terra de Direitos e Justiça Global em 2020, carrega muitas mensagens da/e para a sociedade. Contra as mulheres, esse fenômeno expõe o racismo, o machismo a misoginia entre outras violências. Por isso, vislumbrar o fim dessa violência só será possível quando o combate a ela for a altura do mal que ela causa à democracia. Além disso, é uma grave violação de direitos humanos, pois essas mulheres que já atuam na defesa de direitos humanos, quando assumem seus mandatos, são alvos de violência constante, com o objetivo de impedir o debate e a defesa desses direitos. E a responsabilidade de combater essa violência não é somente do governo, mas da sociedade em geral. A pesquisa aponta que essa violência ocorre de forma sistemática e não somente em períodos eleitorais, com todos os partidos políticos em todo o Brasil, além de evidenciar que com as mulheres essa violência é utilizada como forma de deslegitimá-las como agentes políticos. Com essas análises avaliamos que o fim da violência política só se dará quando esse fenômeno for acompanhando, estudado, combatido e punido, por meio de ações coordenadas entre diversos setores do Estado como apontamos nas recomendações da pesquisa da Terra de Direitos e Justiça Global.

R&I – Mulheres negras e trans estão em luta por maior representatividade política e, nas últimas eleições, tivemos recorde de mulheres trans e negras eleitas para as câmaras municipais. Mesmo com o apoio da sociedade, exercer os mandatos tem sido uma tarefa árdua. Segundo o relatório da Terra de Direitos e da Justiça Global, as mulheres representam 31% das vítimas das ameaças. Poderia comentar sobre o quadro que atravessa a violência de gênero nas especificidades da violência política contra mulheres trans e negras? No que ela difere da violência política direcionada a outros grupos?

 GB – A pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco com o apoio da Terra de Direitos e Justiça Global trouxe elementos de como o racismo, que é estrutural e estruturante em nossa sociedade, também se coloca como o vetor de violências contra mulheres negras e trans agentes políticas. Esse fenômeno para essas mulheres está presente antes, durante e depois da eleição dessas candidatas. A mensagem para as mulheres negras e transexuais vem em forma de insultos e ameaças constantes, objetivando a eliminação e desumanização dessas mulheres por meio de ataques que vão desde a animalização dessas mulheres, comparadas com bichos, insultos sobre os seus cabelos e sua aparência até ameaças explícitas de morte. O racismo é o fio condutor de uma violência e ódio racial sistêmicos que a qualquer momento podem tirar a vida dessas mulheres. Tudo isso com um discurso que justifica os ataques pelo “feito histórico” alcançado por essas mulheres de se verem representadas no sistema político, mesmo sendo elas quase 30% da população brasileira.

R&I – No Brasil, temos o recente caso da Carolina Iara, que sofreu um ataque físico, mas, mesmo assim, teve a proteção negada pela câmara por ser co-vereadora e precisou contratar segurança particular. A falta de proteção a Marielle Franco também é um dos pontos que negligenciaram o caso da vereadora. Além disso, a ineficiência do Estado com o Programa de Defensores dos Direitos Humanos não consegue protegê-las. Mesmo denunciando, não há resposta do Estado. Afinal, como você enxerga que podemos protegê-las? [5]

 GB – O fato de essa violência não ser monitorada e acompanhada pelo Estado cria um vazio institucional sobre esse tema. É urgente a elaboração de um plano integrado que acolha denúncias e vítimas, em uma política de proteção específica para esse tipo de violência. O programa nacional de defensores de direitos humanos não consegue responder a esse fenômeno porque, embora seja direcionado a defensoras de direitos humanos, não possui mecanismos para atender esse tipo específico de violência. Um exemplo é a ação de retirar a vítima de seu local de atuação como forma de protegê-la das ameaças. Nos casos de violência política, retirar as candidatas do local de exercício do seu mandato é cumprir com a vontade dos criminosos que com esses ataques querem, justamente, impedi-las do livre exercício de seus direitos políticos. Uma violência que interfere diretamente no processo democrático e se configura como uma gravíssima violação de direitos humanos.

Diante do nosso trabalho de incidência na América Latina, Raça e Igualdade constata que a violência política atual constitui-se como um dos principais fatores de violações de direitos humanos na região. O Brasil, sendo um país chave em termos políticos, deve posicionar-se e apresentar estratégias efetivas de respeito à vida de seus parlamentares e de combate à violência política. Sendo assim, apresentamos as seguintes recomendações ao Estado brasileiro:

1 – Garantia de segurança para parlamentares negras cis e trans com implementação de políticas que visem combater a violência política de gênero, capacitando órgãos de segurança pública, Judiciário e Legislativo para a promoção de ações à nível nacional que visem combater esse tipo de violência;

2 – Criação de uma legislação específica que vise prevenir, coibir e punir crimes cibernéticos e a consequente disseminação de notícias falsas que vêm sendo um dos pilares para os ataques de violência política;

3 – Ratificação da Convenção Interamericana contra todas as formas de discriminação e intolerância em vistas de punir e coibir o racismo e a LGBTIfobia estrutural e institucional;

4 – Implementação da Convenção Interamericana contra o Racismo perante a legislação brasileira para a formulação de políticas públicas antirracistas.

 

 

[1] https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2020/10/03/stf-divisao-verba-candidaturas-negras.htm

[2] http://terradedireitos.org.br/violencia-politica-e-eleitoral-no-brasil/

[3] https://www.violenciapolitica.org/

[4] https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf

[5] A entrevista ocorreu antes do recente caso da vereadora Benny Briolli

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