Brasil, 28 de setembro de 2022 – No dia 02 de outubro, será dado um pontapé inicial para definir o cenário político do próximo quadriênio no Brasil, numa eleição que tem sido marcada por diversos episódios de violência política. Nas últimas semanas, tornou-se nítido que essa violência não se direciona unicamente a candidatos e candidatas, mas também a eleitores e eleitoras, sobretudo quando defendem pautas consideradas como progressistas e ligadas aos direitos humanos. Nesse sentido, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), como uma organização apartidária, expressa profunda preocupação com os desafios apresentados à garantia da democracia brasileira, da liberdade de expressão e da participação política durante o período eleitoral.
Recentes casos revelam a extrema brutalidade e tentativas de silenciamento que nos alertam sobre o atual cenário político do Brasil: no dia 26 de setembro, em Cascavel, no Ceará, um homem foi assassinado a facadas após ter sido questionado sobre seu voto e declarar que votaria no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O vereador Renato Freitas e candidato a deputado federal, chegou a ter o seu mandato cassado pela Câmara de Curitiba, e teve seu mandato restabelecido após a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a presença de racismo estrutural do ato. Ambas as situações apontam que, no cenário político brasileiro, ainda emergem práticas conservadoras que através do fomento do discurso de ódio e da perseguição a qualquer opositor de seu governo, inviabiliza o exercício do pacto democrático no Brasil.
O medo tem se tornado uma ferramenta política anti direitos humanos e conforme vem sendo denunciado pelos movimentos sociais brasileiros – a violência política é agravada quando perpassa pela população negra e LGBTI+. Com mulheres negras, travestis e transexuais, a violência política se coloca como forma de inviabilizar sua atuação e participação política, através de ofensas, ameaças, humilhações públicas e intimidações.
Sabemos que a pobreza no Brasil tem classe, cor e gênero e que essa parcela da população segue sub-representada nas instâncias de poder, seja no Congresso, nos partidos políticos ou nos governos estaduais e municipais. Considerando a importância de colocar a pauta racial como central no debate eleitoral e também nas políticas públicas do governo a seguir, através deste editorial, jogamos os holofotes sobre a preocupante situação: em um país cuja população é majoritariamente negra, 56% entre pretos e pardos, com uma impagável dívida histórica entre os afrodescendentes e os povos originários [1], é preciso enegrecer a agenda política: o debate racial interseccional precisa ser efetivamente incorporado em vistas de construir uma responsabilização política pela desigualdade social.
Debater o enegrecimento da agenda política é também discutir sobre o apoio e fortalecimento de candidaturas negras e comprometidas com a agenda racial. Dados do TSE demonstram que, das 28.966 candidaturas registradas no tribunal, 14.497 são de pessoas negras. Contudo, a poucos dias das eleições, a maior parte dos partidos políticos não havia atingido os percentuais mínimos de repasses do fundo eleitoral para candidaturas negras, que haviam recebido apenas 36% dos recursos do fundo. Ressalte-se, ainda, que, de um lado, nos poucos debates eleitorais dos candidatos presidenciáveis, a pauta racial não foi abordada; e, de outro, na grande maioria dos estados brasileiros, os candidatos com reais possibilidades de ganharem as eleições para o Executivo e para o Senado são homens brancos e cis-heterossexuais.
Desse modo, destacamos algumas reflexões políticas que consideramos urgentes e salutares para romper com os paradigmas de violência propostos pela atual estrutura discriminatória, racista, sexista e LGBTIfóbica. Ademais, este é um chamado à classe política e ao movimento social para que, impreterivelmente, exijam que qualquer construção de políticas públicas incluam a perspectiva racial interseccional de 2022-2026.
Mulheres negras: racialização da Lei Maria da Penha e plano político para economia do cuidado
Os dados mais recentes demonstram que no Brasil, entre 2009 e 2019, o número de homicídios contra mulheres negras apresentou um aumento de 2%, enquanto o número de homicídios contra mulheres não negras caiu 26,9% no mesmo período. Assim, mesmo após a implementação da Lei Maria da Penha, as taxas de violência continuam a atingir desproporcionalmente mulheres negras. Por tais motivos, o movimento de mulheres negras reivindica a necessidade de racialização da legislação, para a construção de políticas públicas que contemplem sua segurança.
A inserção de um plano de justiça social voltado às mulheres negras apresenta-se como um caminho reparatório dentro de uma cultura de ódio e violência ao feminino, fruto da vigente estrutura patriarcal que precisa reconhecer as precárias condições de vida e de insegurança alimentar em que vive a maior parte das mulheres negras no Brasil. Não se pode esquecer que foi uma mulher negra e empregada doméstica a primeira vítima de morte de COVID-19 no Brasil.
Racialização do debate de segurança pública e responsabilização Federal diante da letalidade policial:
Enquanto a pauta racial não for incorporada na cultura e na estrutura militarizada da segurança pública no Brasil, a criminalização da população negra continuará a se aprofundar no país. É essencial que as práticas de justiça criminal busquem novas formas de combater a violência e reduzir o encarceramento negro em massa. A justificativa colonial de combate ao crime reproduz, dentro das corporações militares, a lógica do senhor de engenho e capitão do mato. No Brasil, o Estado se ausenta da responsabilização pelos direitos fundamentais da sua população e fomenta a violência através das chacinas e reprodução de milícias.
A letalidade da violência policial e a sociabilização pelo medo são reflexos do racismo estrutural e da naturalização da barbárie que gestam uma máquina de guerra na qual só há perdedores. O número de licenças para porte de armas, ampliado durante o Governo Bolsonaro, cresceu 325% em três anos. Desse modo, incidimos pela criação de estratégias coletivas que busquem uma nova política de segurança pública e caminhos para mitigar a violência policial racista, e que possam fomentar a coleta, sistematização e encaminhamento das violações dos agentes do Estado, principalmente nas favelas e nas periferias do país.
Cartografia da violência contra corpos LGBTI+ no Brasil
Importante lembrar que a agenda política LGBTI+ não está desvinculada da agenda racial, pelo contrário, os dados da violência refletem que são as mulheres trans negras as maiores vítimas de assassinato cruéis no país. Por isso, incidimos pela transversalidade das políticas públicas que possam contemplar a população LGBTI+ em suas particularidades. É necessário que a coleta de dados seja de responsabilidade governamental e que seja posta em prática uma agenda coletiva que parta de uma reorganização sociocultural e educacional, em que práticas LGBTIfóbicas sejam de fato responsabilizadas e não permaneçam impunes. É preciso tirar o Brasil do lastimável recorde de ser o país que mais mata pessoas LGBTI+ no mundo e, para isso, é necessário um comprometimento governamental com os direitos dessa população.
Racismo Religioso: implementação de um plano estratégico para conter a violência contra as religiões de matriz africana
Em um estado laico, o discurso que instrumentaliza o discurso religioso para legitimar e promover a violência, bem como para expressar preconceitos, precisa ser combatido. Expressamos forte preocupação diante desse cenário, sobretudo em um cenário de avanço de um fundamentalismo neopentecostal, uma vez que a religião não pode ser utilizada como forma de impedir que determinados grupos tenham seus direitos garantidos, nem deve reverberar uma cultura do ódio e de intolerância contra outras religiões. No Brasil, sabemos que esse ódio é direcionado especialmente aos praticantes de religiões de matriz africana, tendo ocorrido, nos últimos anos, um agravamento do que muitos terreiros e organizações têm denominado de racismo religioso. Assim, urgimos pela defesa dos direitos das religiões de matriz africana e dos povos tradicionais do país.
Povos indígenas: representatividade e defesa dos territórios amazônicos
Ressaltamos que as reivindicações pela racialização das políticas públicas contemplam, em sua totalidade, as demandas étnico-raciais da população brasileira. Sendo assim, os povos originários e quilombolas precisam de que o novo Governo atenda suas especificidades e proteja seus territórios. O racismo ambiental ocorre desde a devastação da floresta amazônica e dos territórios indígenas e quilombolas, à desestruturação das condições sanitárias e habitacionais de comunidades periféricas que vivem em encostas e ribeirinhas. A sub-representação indígena, seja nos parlamentos ou em qualquer outro espaço de decisão e poder, está levando a mais uma dizimação de muitos povos em projetos que beneficiam o agronegócio e mineradoras.
O chamado indígena pelo fim do marco temporal é somente uma das estratégias de sobrevivência na qual seguem denunciando o massacre de suas comunidades por garimpeiros. A crescente destruição da floresta Amazônica segue sendo denunciada por ativistas e defensores de direitos humanos, fato este que levou o Brasil a entrar na “lista suja” da ONU de país perigoso para essas lideranças. Assim, insistimos que essa intimidação governamental retrata as barreiras impostas à sociedade civil com os fechamentos dos espaços cívicos e defendemos que o próximo governo reative comitês e conselhos que prezavam pela preservação dos direitos humanos.
Implementação de acordos internacionais que prezam pelo enfrentamento do racismo estrutural
Desde maio de 2021, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (CIRDI) e, como próximo passo, o Governo deve implementar a Convenção. Com status de emenda constitucional, a CIRDI também versa sobre direitos econômicos e sociais, representando um instrumento jurídico que possibilita um novo horizonte para projetos de reparação histórica e representatividade.
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Durante os últimos anos, Raça e Igualdade vem atuando no Brasil no intuito de fortalecer as organizações da sociedade civil na luta contra a discriminação racial e as desigualdades de gênero, fomentadas pelas atuais políticas excludentes e pelo crescimento do discurso de ódio. Desde então, em nosso papel como uma organização de direitos humanos, seguimos denunciando as violações dos direitos humanos no país. Diante de uma nova gestão governamental que se inicia, alertamos que a sociedade civil terá um desafio enorme de conscientizar a classe política, em todas as esferas, de que os planos de governos precisam passar pelo debate racial interseccional.
Raça e Igualdade continuará a monitorar o Estado brasileiro para levar às instâncias internacionais de direitos humanos os padrões de violações que se repetem às populações em situação de vulnerabilidade. Todos somos responsáveis. Não há neutralidade possível em uma sociedade que precisa se conscientizar como agentes de mudança. O voto, em seu processo democrático, é o exercício do direito à mudança, e neste momento, uma porta de saída para o discurso de ódio.
[1] População negra, quilombola e indígena