Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa: Raça e Igualdade faz um chamado à luta contra o racismo religioso no Brasil

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Brasil, 21 de janeiro de 2021. Instituído pela Lei nº 11.635/2007, o dia 21 de janeiro marca o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil. Em virtude das celebrações da data, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) faz um chamado à visibilização da luta contra o racismo […]

Brasil, 21 de janeiro de 2021. Instituído pela Lei nº 11.635/2007, o dia 21 de janeiro marca o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa no Brasil. Em virtude das celebrações da data, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) faz um chamado à visibilização da luta contra o racismo religioso recorrendo, primeiramente, aos princípios que fundamentam a Constituição brasileira.  Em seu artigo 5º, inciso VI, é afirmada a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Ora, como um direito garantido constitucionalmente, por que falar de intolerância religiosa e racismo religioso no país miticamente conhecido pela liberdade religiosa?

A escolha da data já traz em si a resposta a questão: é uma homenagem ao dia do falecimento da Iyalorixá Gildária dos Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, na Bahia, que foi vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana, em 1999. Acusada de charlatanismo, Mãe Gilda teve seu terreiro invadido e depredado, além de seu marido ter sofrido ataques físicos e verbais de fundamentalistas religiosos. Os traumas levaram a Iyalorixá a sofrer um infarto, vindo a falecer em 21 de janeiro de 2000.

Diante destes fatos, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa traz à luz a necessidade de diálogo para contestar e refletir sobre o discurso dominante que demoniza as práticas religiosas que não estejam de acordo com a fé judaico-cristã. Além disso, o preconceito deve ser combatido pela união de líderes religiosos que através da informação podem evitar a disseminação do ódio e cultivar o respeito a diversidade religiosa. Nesse sentido, pensar liberdade religiosa é também estimular a construção de políticas públicas que contemplem atores da sociedade civil que estão na luta para combater o avanço da violência e da intolerância.

No entanto, o racismo religioso faz parte de um projeto político histórico no Brasil que, infelizmente, sempre esteve apoiado em bases jurídicas. A necessidade de controle sobre os corpos e subjetividades das pessoas negras esteve atrelado ao processo de demonização e criminalização dos cultos afro-brasileiros. Com isso, orquestrou-se uma ordenação sócio jurídica que criminalizava até mesmo os objetos sagrados dessas religiões. Prova disso é que somente em setembro de 2020, os objetos sagrados afro-brasileiros expostos no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro foram transferidos para o Museu da República, conforme aponta a Promotora Lívia Santa’Anna Vaz em seu artigo [1].

Segundo Lúcia Xavier, Coordenadora Geral da ONG Criola, a existência de vários dispositivos legais legitimados pelo ordenamento jurídico brasileiro, a efetividade dos instrumentos de tutela da liberdade religiosa e de crença não se concretizam para os povos de terreiro que continuam sendo destruídos por práticas que promovem o apagamento da cultura tradicional, a invisibilização dos saberes e o não reconhecimento de suas existências. “Os adeptos dos terreiros perdem o acesso aos seus direitos básicos como consequência da violência sustentada institucionalmente e reafirmada socialmente”, denuncia.

Outro fator agravante na disseminação do racismo religioso está no crescimento e avanço das igrejas Neopentecostais pelo país que, além de promoverem um sistema doutrinário excludente e preconceituoso, possuem projeto político de poder. A intolerância pregada por essa doutrina, estimulada pelos líderes religiosos, se reflete na consolidação de estigmas e estereótipos que se concretizam em ações reais e violentas, levando a constantes ataques aos terreiros e aos praticantes de religiões afro-brasileiras. Xavier ressalta que “a aliança desse setor com o Estado permitiu o acesso a privilégios, recursos financeiros, inclusive a meios de comunicação onde a “guerra” às religiões de matriz africana se intensifica, com propagandas difamatórias e enganosas”.

De fato, a hegemonia do Neopentecostalismo e de Igrejas Católicas nas principais cadeias midiáticas de televisão marginaliza as religiões de origem africana, tais como o candomblé e a umbanda, que são as mais difundidas no país [2]. Com isso, os praticantes dessas religiões também são relegados a uma série de preconceitos que resultam na exclusão social dessa parcela da população. Além disso, o conglomerado de mídia brasileiro é controlado por cinco famílias, o que resulta no controle das informações da mídia impressa, televisiva e online [3]. Logo, as histórias relacionadas às religiões afro-brasileiras são repletas de estigma e, consequentemente, propagam a intolerância religiosa no Brasil.

“Em algumas regiões do país onde os símbolos das culturas afro-brasileiras eram mais fortes como na Bahia, a disputa de sentidos em torno de práticas culturais negras também cresceu bastante. Cultos evangélicos em ritmo de axé, acompanhadas ao som de atabaques, a transformação do acarajé (alimento religioso das religiões afro-brasileiras) em “bolinho de jesus”. Lúcia Xavier, Coordenadora Geral da ONG Criola.

De acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2019, houve um 56% aumento de queixas/ataques baseados em intolerância religiosa (356), em comparação com apenas 211 em 2018 [4]. A maioria das vítimas eram adeptas das religiões do candomblé e da umbanda. Além disso, dados a partir do Disque 100 [5], telefone linha para denúncias de violência, demonstram que, entre 2015 e 2019, 712 relatos de violência religiosa foram feitas no Brasil. Entre essas comunicações, 57,5% eram de religiões de base africana [6].

Gustavo Melo Cerqueira, Egbon do Ile Axé Omiojuaro e Babalorixá do Ile Axé Omi, ressalta que a associação de traficantes e milicianos evangélicos engrossaram as ações violentas de obreiros e pastores. Desse modo, a violência contra as lideranças e as instituições religiosas de matriz africana alcançam outro patamar. “Ameaças, perda da propriedade, expulsão e confisco dos terrenos e casas nas favelas e bairros periféricos, agressões físicas contra os adeptos dessas religiões e destruição dos símbolos tomaram fôlego. Sem contar que homicídios (6 em 2016 no Pará), expulsão de lideranças religiosas de territórios de favelas e bairros periféricos não têm sido contabilizadas”, afirma.

Melo frisa que a experiência discriminatória de lideranças e praticantes de religiões de matriz africana se dão nas bases estruturais que atravessam a experiência cotidiana como o acesso negado ou dificultado aos serviços de saúde; a não autorização para o uso dos pareamentos religiosos em instituições públicas; o rechaço às manifestações culturais negras e a proibição de uso de espaço comum para oferendas que mesmo discutidas e denunciadas não avançam na concretização dos direitos religiosos. Além disso, o avanço do conservadorismo político impacta na ampliação do debate. “Outro fator relevante para o aumento da violência são os contextos sociais conservadores motivados por correntes políticas que buscam intervir no campo dos costumes, onde o debate sobre raça, gênero, identidade de gênero e direitos são negados. O racismo religioso se articula com as dimensões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual”, avalia. Melo destaca também que, não por acaso, a maioria das lideranças religiosas atacadas são mulheres negras e pessoas LGBTI.

“O enfrentamento ao racismo religioso se articula profundamente com o enfrentamento do racismo patriarcal- entendida aqui como a interseção das subordinações de raça, gênero, identidade de gênero e orientação sexual -e essa é uma estratégia que precisa ser desenvolvida simultaneamente com os movimentos negros e de mulheres negras”. Gustavo Melo, Egbon do Ile Axé Omiojuaro e Babalorixá do Ile Axé Omi.

 Em um cenário em que a luta pelo respeito à diferença e pela liberdade de crença enfrenta um contexto de violência física e moral, Raça e Igualdade vem reafirmar o chamado ao Estado brasileiro ao combate ao racismo religioso. Em uma sociedade plurirracial e de crenças diversas, o racismo não pode ser vetor de uma política de morte que historicamente atua apagando as práticas culturais afro-religiosas. Nesse sentido, clamamos por alcançar uma sociedade equitativa em que se respeitem os direitos humanos sem nenhuma forma de discriminação. Desse modo, instamos o Estado brasileiro às seguintes recomendações:

1 – Estabelecer políticas públicas que visem o enfrentamento da violência religiosa contra religiões de matriz africana com o objetivo de integrar sistemas e o trabalho de agentes públicos que atuam no combate ao ódio de crimes religiosos e na promoção da igualdade;

2 – Sensibilização da mídia e ordenação do conglomerado midiático diante do domínio do discurso Neopentecostal visando o incentivo ao diálogo junto a sociedade civil, Ministério dos Direitos Humanos e Secretarias Estaduais e Municipais para que possam trabalhar em conjunto na fiscalização e promoção da liberdade religiosa;

3 – Promoção de uma programação educativa e preventiva com uma perspectiva interseccional de raça e gênero em comunidades e setores institucionais e, ademais, incentivar a empresas para que promovam a igualdade racial e o respeito à diversidade religiosa e cultural, assim como, a responsabilização de pessoas físicas ou jurídicas que promovam a produção e divulgação de conteúdos discriminatórios ou que incitem o racismo, dentre eles o racismo religioso.

 

[1] https://migalhas.uol.com.br/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil–um-velho-bau-e-suas-novas-vestes

[2] As duas tradições religiosas afro-brasileiras mais conhecidas são o candomblé e a umbanda. O candomblé foi formado por negros africanos escravizados, enquanto a umbanda foi criada no Brasil no início do século passado. Existem algumas diferenças entre as duas tradições. Cantos de candomblé são executados em línguas de origem africana, como iorubá ou kimbundo. Na umbanda, são cantadas principalmente em português. Outra diferença é a prática do sacrifício de animais. Embora, em princípio, não haja sacrifício de animais na Umbanda, no Candomblé, a prática é realizada, como forma de circular a energia que anima tudo no mundo: o axé. Mais do que religiões, essas tradições ostentam práticas sociais, culturais e espirituais no continente africano.

[3] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cinco-familias-controlam-50-dos-principal -veiculos-de-midia-do-pais-indica-relatorio/

[4] https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21 / denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019

[5] https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso -a-informacao / ouvidoria / balanco-disque-100

[6] https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2015/07/negros-e- religioes-africanas-sao-os-mais-discriminados-mostra-disque-100

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