Por uma outra política de segurança: a letalidade da violência policial no Brasil em 2020

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No Brasil, historicamente, o uso da violência policial sempre esteve camuflado através do discurso da ‘manutenção da ordem social’. Discurso que por si só já carrega uma sentença em uma sociedade que despreza as diferenças: a morte. Através da anuência do Estado brasileiro, a violência se tornou uma forma mais barata de ignorar as desigualdades […]

Violência Policial no Brasil em 2020

No Brasil, historicamente, o uso da violência policial sempre esteve camuflado através do discurso da ‘manutenção da ordem social’. Discurso que por si só já carrega uma sentença em uma sociedade que despreza as diferenças: a morte. Através da anuência do Estado brasileiro, a violência se tornou uma forma mais barata de ignorar as desigualdades e, assim, se concretizou como uma guerra civil permanente contra a população negra e pobre. Enquanto isso, o percurso genocida do racismo revela-se através dos dados da violência policial em 2020; a morte de muitos (crianças, jovens, homens e mulheres negros) e o silêncio de milhares.

O relatório “A cor da violência: a bala não erra o alvo” [1], realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, aponta os dados da violência racista em 2019. Na Bahia, estado de população majoritariamente negra, 97% dos mortos pela polícia eram negros; no Rio de Janeiro, que possui 51% da população negra, 86% dos mortos pela polícia eram pessoas negras, o maior número em três décadas. Em São Paulo, os negros representam 64% dos mortos em ações policiais; já em Pernambuco, foram 9 em cada 10 mortos. No Ceará, a realidade é alarmante; a ausência da categoria raça causa subnotificação dos dados, revelando que em 77% dos casos as vítimas não tiveram sua cor registrada e, das que tiveram, 87% eram negras. Diante dos fatos, a prova é incontestável: o Brasil mata vários Georges Floyd por dia.

A tragédia, no entanto, não poderia ser tão premeditada e tornada tão real no país. Em julho, a cena fatídica do caso George Floyd se repetiria em São Paulo, como uma reafirmação de poder e da política genocida contra corpos negros e periféricos da polícia que goza de plena impunidade no Brasil. Uma mulher negra, de 51 anos, teve seu pescoço pisado por um policial sendo arrastada durante uma abordagem truculenta que só veio a confirmar a necropolítica vigente [2]. Fatos como esses, confirmam que os casos não são isolados e que as estratégias de controle da polícia militar brasileira não contemplam a população negra com a presunção da inocência. Esse princípio só cabe a branquitude que do alto dos seus privilégios humilha policiais em seus condomínios de luxo e mantem-se viva [3]. Logo, conclui-se que para a corporação policial algumas vidas valem mais do que as outras.

Somente no último ano, seus nomes foram: Emily Victória, Rebeca Beatriz Rodrigues, João Pedro Mattos Pinto, Ágatha Félix, Kauã Rosário, Kauan Peixoto, Jenifer Silene Gomes, Ketellen Gomes, entre outras que sequer foram notificadas ou noticiadas. Além de terem morrido em ações policiais e/ou por ‘bala perdidas’, esses nomes são de crianças e adolescentes negros. Crianças violadas em seus direitos de brincar, de estudar e que tiveram suas vidas ceifadas por uma bala de fuzil. Somente no Rio de Janeiro, de janeiro a junho deste ano, 99 crianças e adolescentes foram mortos por policiais, sendo 27% na capital e 73% em outros municípios [4]. Quando uma polícia, que tem o aval estatal do controle da vida e da morte pratica uma política de segurança pública genocida, quem responde pela vida da população negra?

Em agosto deste ano, o Supremo Tribunal Federal decretou uma medida cautelar determinando limites e mudanças na política de segurança do Rio de Janeiro. Conhecida como ADPF das Favelas [5], teve seu julgamento iniciado em abril, mas somente em agosto a medida foi concretizada por unanimidade proibindo o uso de helicópteros blindados e ações policiais em favelas. Uma vitória que possibilita proteger os direitos da população de favela. A ADPF das Favelas vai além da decisão do Supremo, em junho, de suspender as ações nas favelas devido à pandemia que, somente no mês de julho, conseguiu reduzir em 70% o número de mortes e 50% o número de feridos por ações policiais no Rio de Janeiro [6].

No entanto, mesmo com a ADPF das favelas vigente, as operações policiais não findaram por completo, principalmente na região metropolitana do Rio de Janeiro, como a Baixada Fluminense e São Gonçalo, nas quais resultaram em mortes pelo uso indiscriminado da violência policial. Além disso, organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) se manifestaram através de um documento oficial, condenando o uso excessivo da força policial contra moradores de favelas empregado pela política do então Governador Wilson Witzel [7].

Na véspera do Dia da Consciência Negra, o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro, sufocado por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, veio confirmar a violência racista camuflada em seguridade de propriedades privadas e estabelecimentos comerciais que constantemente encontram no corpo negro seu principal alvo [8]. Em comum com as ações policiais militares estão as abordagens e estratégias violentas diante da população negra. Ademais, muitos funcionários que atuam na segurança privada são ex-policiais e até mesmo alguns que exercem o ofício privado de forma clandestina [9]. Sem contar com as milícias, facções que atuam como poder paralelo dominando várias áreas do país violentamente, nas quais, alguns policiais e ex-policiais já foram investigados por participação.

O ano ainda não terminou, mas mães pretas continuam erguendo suas vozes diante da brutalidade policial que extermina a vida de seus filhos. Em dezembro, Edson Arguinez Júnior, 20 anos, e Jordan Luiz Natividade, 17 anos, foram assassinados por policiais durante mais uma abordagem violenta da polícia que atirou indiscriminadamente sobre seus corpos enquanto a moto que eles dirigiam estava em movimento [10]. Os policiais militares foram presos em flagrante porque a cena foi registrada por vídeo, porém a justiça militar além de conceder privilégios aos policiais não se faz justa para a população negra que vive em luto permanente. Parem de nos matar é o lema que busca conscientizar a sociedade de um sistema estruturalmente e institucionalmente racista. Esse lema busca alertar a sociedade que a ‘normalidade’ das mortes negras é questionável e não pode ser silenciada.

Assim, o Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), como uma instituição que afirma sua luta pela promoção e defesa dos direitos humanos, exige urgentemente uma reformulação dessa política higienista da polícia militar brasileira que condena corpos negros a morte. A irresponsabilização do Estado e dos poderes públicos diante das práticas racistas e violentas dos agentes de segurança pública não podem ser mais toleradas como política de organização social. Numa sociedade extremamente desigual como a brasileira, é preciso novas formas de normatização que não contemplem a violência como política de segurança. Transformar a discussão em ação é o primeiro passo para criação de estratégias antirracistas no país que tem a polícia mais violenta do mundo. Assim, fazemos ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações:

1 – A urgente adoção e elaboração de um plano de políticas públicas que coíbam o uso de armas letais por agentes da segurança pública e que prezem por uma justiça reparatória pela violência e discriminação;

2 – Regulamentação do trabalho das redes privadas de segurança patrimonial;

3 – Instauração de projetos que visem uma educação antirracista dentro das instituições militares que trabalham com segurança pública no país;

4 – Que sejam feitas investigações sobre as condutas policiais de modo que proporcionem reparação e justiça pelas mortes ocorridas.

5 – Responsabilização penal e administrativa de policiais que cometam abusos em sua atuação;

6 – Criação de protocolos para as forças policiais específicos sobre a proteção de crianças e adolescentes;

7 – Criação de mecanismos internos de controle social para a coibir a violência policial.

 

 

[1] http://observatorioseguranca.com.br/produtos/relatorios/

[2] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/17/mulher-negra-pisoteada-no-pescoco-por-pm-diz-ter-desmaiado-na-abordagem.htm

[3] https://ponte.org/voce-pode-ser-macho-na-periferia-mas-aqui-voce-e-um-bosta-diz-morador-de-alphaville-para-pm/

[4] https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2020/12/6046843-policia-do-rio-de-janeiro-e-a-que-mais-mata-criancas-no-brasil-aponta-pesquisa.html

[5] https://www.adpfdasfavelas.org/

[6] https://www.conectas.org/noticias/suspensao-de-operacoes-policiais-no-rj-durante-pandemia-reduz-mortes-em-70

[7] https://www.brasildefato.com.br/2019/08/19/onu-e-oea-questionam-witzel-sobre-uso-abusivo-de-violencia-contra-pobres-no-rio

[8] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-e-morto-em-supermercado-carrefour-em-porto-alegre.ghtml

[9] https://theintercept.com/2018/07/16/o-lucrativo-exercito-de-seguranca-privada-comandado-por-militares-milicianos-e-amigos-de-eduardo-cunha-no-rio/

[10] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/12/14/pms-sao-presos-sob-acusacao-de-matar-2-jovens-no-rio-video-flagrou-acao.htm

 

 

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