8M: A Força Antirracista na Luta pelos Direitos de Todas as Mulheres

8M: A Força Antirracista na Luta pelos Direitos de Todas as Mulheres

Washington D.C, 8 de março de 2024. – Desde sua criação, o movimento pelos direitos das mulheres tem sido alimentado por diferentes perspectivas, ampliando sua visão e missão em diferentes esferas da sociedade. Uma delas é a perspectiva antirracista que, apesar de encontrar uma série de obstáculos para a sua plena integração, tem sido a base de importantes contribuições para a luta.

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, através do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), queremos exaltar a perspectiva antirracista, levando em conta que machismo e racismo são formas de opressão que se entrelaçam e afetam exclusivamente mulheres de diferentes origens étnicas e raciais.  No caso das Américas, mulheres afrodescendentes e indígenas em particular.

Conversamos com líderes e ativistas de diferentes partes da América Latina para que elas mesmas pudessem perceber a importância da perspectiva antirracista na luta pelos direitos das mulheres, suas contribuições para o movimento feminista e os desafios que persistem em diferentes níveis para incorporar plenamente essa visão no trabalho de defesa e promoção dos direitos das mulheres.

O racismo como gatilho para múltiplas formas de violência

“A perspectiva antirracista na luta pelos direitos das mulheres é necessária se concebemos o racismo como uma violência que permeia o sistema, o Estado e as estruturas sociais, a família, nossos corpos, e que faz com que a violência aumente; Ou seja, o racismo reconhecido como violência estrutural também replica e reproduz múltiplas formas de violência”, diz Patricia Torres Sandoval, mulher indígena do Grupo P’urhépecha, que integra a coordenação geral da Coordenadoria Nacional de Mulheres Indígenas (Conami) no México.

“A perspectiva antirracista dentro dos feminismos é essencial porque entende que a categoria de mulheres é muito mais ampla ou complexa do que apenas nos identificarmos como mulheres, engloba tudo o que seria a visibilidade da situação e das experiências das mulheres afrodescendentes, indígenas, trans, traz a análise interseccional que é pensar nas múltiplas formas de opressão como o racismo, machismo, classe, processos migratórios, etc.”, diz Gilma Vieira da Silva, coordenadora regional da Rede de Jovens Afrodescendentes da América Latina e Caribe (REDJUAFRO).

Vieira da Silva acrescenta que a interseccionalidade não pode ser pensada sem um contexto étnico-racial, e lembra que esse conceito foi formulado por uma mulher afrodescendente: a advogada e acadêmica estadunidense Kimberlé Crenshaw, que dedicou grande parte de seu trabalho para compreender a desigualdade estrutural em questões de gênero.

A violência de gênero não é individual

Já Torres Sandoval ressalta que as mulheres indígenas têm contribuído para o reconhecimento da violência coletiva. Ela explica que a frase “Meu corpo, meu território” – que foi apropriada como slogan pelo movimento feminista – vem de mulheres indígenas como forma de dizer que violar seus corpos também viola a terra e o território. “Como mulheres e povos indígenas, nos reconhecemos como parte integrante do território e da Mãe Terra, contrariando a perspectiva ocidental de que somos donos da terra”, diz.

Para Gahela Cari, feminista trans indígena da Federação Nacional das Mulheres Camponesas, Artesãs, Indígenas, Indígenas e Assalariadas do Peru, o feminismo é essencial para os processos de mudança, no entanto, ela ressalta que não basta se não for antirracista. Em suas palavras, o feminismo antirracista “se posiciona em meio a uma sociedade com tantas desigualdades” e mostra que, além do gênero, outros sistemas de opressão impossibilitam viver com dignidade.

“Temos que construir processos de escuta, diálogo, construção coletiva. Mesmo quando não entendemos totalmente o que a outra pessoa está colocando na mesa”, aponta sobre uma tarefa necessária na luta feminista para trabalhar a partir de uma abordagem antirracista. Nesse sentido, ela destaca a importância de fechar o caminho para processos autoritários no país, como o que está acontecendo com o atual regime político no Peru.

Educar a partir de uma perspectiva antirracista, uma tarefa dupla

Nesse sentido, Fernanda Gomes, assistente social e integrante da Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL) no Brasil, questiona o fato de que é preciso educar constantemente sobre a perspectiva antirracista para pessoas e grupos que não têm essa visão adequada ou que, até mesmo, a excluem.

“É um grande desafio porque a gente perde tempo pensando em uma política pública, escrevendo um manifesto, para educar essas pessoas. Temos que estar constantemente dizendo ‘ah, fulano de tal, eu não sou seu professor, pesquise no Google, pergunte a um amigo branco seu’. O movimento de mulheres negras, lésbicas e feministas também é um movimento de educação. Estamos educando pessoas brancas o tempo todo e é exaustivo”, diz.

Contribuições e desafios

Brisa Bucardo, jornalista do povo Miskito da Nicarágua, destaca o papel que os movimentos de mulheres têm desempenhado no contexto da costa caribenha do país, pois não apenas fornecem apoio fundamental às mulheres vítimas de violência, mas também lideraram as denúncias das cidadãs e fortaleceram as capacidades das mulheres tanto individual quanto coletivamente. Além disso, desmantelaram conceitos arraigados de violência historicamente justificados sob o rótulo de “cultura”.

Em termos de contribuições para a luta pelos direitos das mulheres, Dunia Medina Moreno, mulher afrodescendente e membro da Rede de Mulheres de Cuba, destaca o papel que as mulheres afrodescendentes têm desempenhado na promoção e defesa dos direitos humanos, o que resultou em uma proteção mais abrangente dos direitos de todas as pessoas em sua diversidade de identidades.

“Devemos criar um feminismo onde todas as mulheres se encaixem, um feminismo interseccional onde todas as mulheres se integrem e possamos cobrir todas as dimensões de discriminação que experimentamos”, diz Leticia Dandre Pie, ativista de direitos humanos na República Dominicana e membro do Movimento de Mulheres Dominicano-Haitianas (MUDHA).

Apesar dos avanços na introdução da perspectiva antirracista na luta pelos direitos das mulheres, ainda há desafios para uma real integração que se traduza não apenas em ativismo mais inclusivo, mas também na formulação de políticas públicas mais abrangentes. “Sabemos que a militância hoje tem que ser reconhecida como um trabalho, o nosso tempo que colocamos na luta tem que ser reconhecido, mas muitas vezes as mulheres afrodescendentes recebem pouquíssimos recursos, isso inclui também mulheres trans, mulheres com deficiência, mulheres indígenas”, diz Gilma Vieira da Silva, da REDJUAFRO.

“São muitos os desafios para se considerar a perspectiva antirracista tanto no Estado, na academia e na sociedade em geral, há sobretudo um imaginário geral que ainda coloca o eurocentrismo como a ideia do melhor, de aspirar a ser esse estereótipo branco hegemônico voltado a certos parâmetros da beleza estética, mas que não só existe no imaginário geral como consegue também permear as instituições.”  diz Patricia Torres Sandoval, da CONAMI México.

Do “feminismo branco” à interseccionalidade

Uma das grandes críticas aos feminismos originários, ou o que podemos chamar de “feminismo branco”, é que eles universalizaram a experiência das mulheres brancas[1]. Ou seja, no início a luta do feminismo era reduzida apenas às necessidades das mulheres que, de uma forma ou de outra, estavam em situação de privilégio.

A perspectiva antirracista no feminismo é crucial porque desafia essa visão eurocêntrica e androcêntrica que permeou muitos campos acadêmicos e movimentos sociais por meio do feminismo branco[2]. As mulheres racializadas que passaram a desafiar esses padrões forneceram análises críticas a partir de suas experiências situadas, questionando as estruturas de poder e defendendo uma compreensão mais completa das interseções entre raça, gênero e classe na luta contra a opressão.

Em particular, elas têm questionado a homogeneização da categoria “mulher” nos movimentos feministas, apontando que as experiências das mulheres variam significativamente de acordo com sua raça, etnia, classe e orientação sexual[3]. Essa abordagem interseccional tem enriquecido a compreensão das interconexões entre diferentes sistemas de opressão.

Você sabia?

Existem instrumentos de proteção e promoção de direitos com abordagem antirracista ou com perspectiva de gênero-raça. Alguns deles são:

  1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH): É o documento internacional que estabelece os direitos fundamentais de todas as pessoas sem qualquer discriminação baseada em raça ou gênero, entre outros.
  2. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) é o instrumento internacional que trata especificamente da discriminação de gênero e leva em conta as dimensões de raça e outros fatores. Reconhece a interseccionalidade das discriminações enfrentadas pelas mulheres.
  3. Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (CERD): Este tratado das Nações Unidas proíbe a discriminação racial em todas as suas formas e promove a igualdade racial. Embora não focalize exclusivamente a perspectiva de gênero, reconhece a interseccionalidade da discriminação.
  4. Declaração e Plataforma de Ação de Pequim sobre a Mulher: Esta convenção, que foi adotada na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher em 1995, destaca a interseccionalidade e reconhece a importância de abordar a discriminação com base em gênero e raça.
  5. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará): é o tratado regional interamericano que tem como foco a violência de gênero e reconhece a interseccionalidade das formas de discriminação enfrentadas pelas mulheres, incluindo o racismo.
  6. Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes: Esta é a convenção que aborda os direitos dos povos indígenas e reconhece a importância de abordar a discriminação com base na raça.
  7. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas: reconhece o direito das mulheres indígenas ao reconhecimento, proteção e gozo de todos os direitos humanos sem discriminação de qualquer natureza, estabelecendo o dever dos Estados de erradicar todas as formas de violência contra as mulheres indígenas.
Recomendações

A fim de assegurar a integração efetiva de uma perspectiva racial nas políticas e resoluções relativas aos direitos das mulheres, os Estados e os órgãos de direitos humanos devem:

  • Formular políticas de igualdade de gênero que incluam explicitamente a perspectiva interseccional na formulação de políticas de igualdade de gênero.
  • Promover a diversidade em todos os níveis de liderança para refletir diferentes experiências.
  • Implementar programas educacionais que destaquem a importância de compreender as complexidades da interseccionalidade. Em particular, promover a conscientização da importância da interseccionalidade em todas as áreas do governo, bem como nos órgãos decisórios e judiciais, para que essa perspectiva seja replicada nas decisões.
  • Apoiar e promover organizações que trabalham na intersecção de gênero e raça.
  • Avaliar regularmente a eficácia das políticas, garantindo que várias camadas de discriminação sejam abordadas.

 

[1] Parra, Fabiana (2021). El feminismo será antirracista o no será. Joselito Bembé. Revista Político Cultural, nro. 2, p. 42, disponível em: https://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.12875/pr.12875.pdf

[2] Curiel, Ochy (2007). Crítica pós-colonial às práticas políticas do feminismo antirracista. Nomads, ISSN 0121-7550, ISSN-e 2539-4762, No. 26, p. 93, disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3997720

[3] Boddenberg, Sophia (2018). Mulheres indígenas e afrodescendentes, interseccionalidade e feminismo decolonial na América Latina. Revista Búsquedas Políticas, Universidad Alberto Hurtado, disponível em: https://politicaygobierno.uahurtado.cl/wp-content/uploads/sites/8/2018/06/sophia_boddenberg_mujeres_indigenas.pdf

Raça e Igualdade reconhece o papel da juventude indígena na América Latina e no Caribe como agentes de mudança em direção à autodeterminação

Washington D.C., 9 de agosto de 2023 – Na América Latina e no Caribe, há um contexto de violência generalizada em que persistem desafios importantes no reconhecimento e pleno gozo da autodeterminação e dos direitos correlatos. Diante disso, a juventude indígena, consciente de seu papel como agente de mudança, promove processos de reivindicação e de incidência política para a defesa dos direitos humanos e promoção da justiça, responsabilização e reparação.

Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas, o Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) se une ao chamado feito pelas Nações Unidas sob o lema “Juventude indígena, agentes de mudança para a autodeterminação”, que reconhece os esforços, mas também os desafios enfrentados pela juventude indígena na região perante a preservação de suas terras, territórios, lugares sagrados e a revitalizção de suas tradições e manifestações identitárias.

 Contexto

Estima-se que a América Latina e o Caribe abrigam aproximadamente 58 milhões de pessoas pertencentes a 800 povos indígenas, representando 9,8% da população regional. Em vários Estados da região, há lacunas significativas no cumprimento de marcos normativos e políticos favoráveis aos direitos desses povos, assim como de padrões internacionais e interamericanos sobre os direitos dos povos indígenas e tribais.

A situação de violência que enfrentam em decorrência da presença e invasão de suas terras por pessoas não indígenas, sejam estas envolvidas com extração de madeira, mineração, pecuária ou tráfico de drogas; ou por situações de conflito armado, que deixam consequências de grave risco e ameaça à sobrevivência física e cultural desses povos. Da mesma forma, ocorrem com frequência situações de criminalização, estigmatização, ameaças contra lideranças indígenas e até assassinatos.

Juventude indígena, agentes de mudança do presente e do futuro

Há algumas décadas, o movimento indígena latino-americano reconhece a gestão de um movimento de sua própria juventude, que se articula de forma regional e constrói ações específicas para o atendimento de suas demandas, entre as quais o reconhecimento de suas diversidades.

Os jovens indígenas têm uma abertura ao diálogo interseccional em suas comunidades, o que contribui para a validação de suas identidades e compromisso com o legado de seus ancestrais. O fato de possuírem uma visão de mundo plural e interseccional, fortalece as estratégias de advocacy perante órgãos de proteção dos direitos humanos, como o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas; No entanto, há também desafios a enfrentar como a segregação etária, o desemprego, a discriminação de identidade de gênero, as ameaças, entre outros. 

Para Thaís Diakarapó, liderança jovem do povo Dessana e Coordenadora do Departamento de Adolescentes e Juventude Indígena da Rede Makira E’ta, o principal desafio da juventude indígena é “ressignificar que a juventude não é só o futuro, somos também agentes de transformação do presente, do agora, e de que temos a capacidade de liderar e estar à frente de nossas lutas com o desejo de realizar nossas demandas”.

Diakarapó reconhece que o trabalho da juventude “está sendo estruturado a cada dia e formando lideranças dentro de sua rede de luta”, no entanto, suas demandas atuais, discussões e debates estão sendo feitos apenas “de jovens para jovens” indígenas, sendo de grande importância que esses diálogos sejam também intergeracionais, com as autoridades e outros agentes de maior poder na implementação de políticas de transformação.

Já da comunidade Muxhe, no istmo de Tehuantepec Oaxaca, no México, Dayanna Gallegos Castillejos, mulher trans e ativista,  considera que o maior desafio enfrentado pelos jovens indígenas são os atos de discriminação étnica, principalmente quando pertencem a identidades de gênero indígenas.  

A juventude indígena precisa de visibilidade… Precisamos estar na agenda global para fortalecer a luta por nossas identidades indígenas”, acrescenta. 

A partir de Raça e Igualdade, reafirmamos nosso compromisso com a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas. Reconhecemos o  papel fundamental da juventude indígena que  levanta a voz na busca por justiça para seus povos e cria conexões intergeracionais para manter vivas suas culturas e tradições, sem interferências externas.

Instamos aos Estados para que implementem leis e políticas que garantam o direito à autodeterminação, à autonomia e ao livre consentimento, prévio e informado; além de combater problemas estruturais, desigualdades históricas, discriminação e racismo, que colocam em risco o bem-estar social dos povos indígenas.

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