Direitos LGBTI+ no Brasil: Impressões após visita de Roberta Clarke, Relatora da CIDH

Direitos LGBTI+ no Brasil: Impressões após visita de Roberta Clarke, Relatora da CIDH

Brasil, 06 de outubro de 2023 – Em visita promocional ao Brasil facilitada pelo Instituto sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), Roberta Clarke, Relatora dos Direitos das Pessoas LGBTI da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), teve a oportunidade de dialogar com organizações da sociedade civil e ativistas LGBTI+ de Brasília, Fortaleza e Rio de Janeiro. Durante a visita que aconteceu de 18 a 22 de setembro, a Relatora da CIDH pode acompanhar de perto a realidade da população LGBTI+ brasileira que, entre avanços e retrocessos, segue unida como movimento social e na luta pela preservação dos direitos conquistados.

A trajetória da visita de Roberta Clarke além do eixo Rio-São Paulo foi uma estratégia adotada por Raça e Igualdade após diversas escutas da sociedade civil que, constantemente, pleiteava por atenção as diferentes realidades da população LGBTI+ no país. Assim, junto ao apoio do Ministério dos Direitos Humanos, através da Secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, Symmy Larrat, a cidade de Brasília foi crucial para reuniões com gabinetes ministeriais e encontros com o movimento LGBTI+ do Distrito Federal. Vale ressaltar que o estado do Ceará, um dos primeiros na lista de assassinatos de pessoas LGBTI+, com destaque para o assassinato de pessoas trans, segundo o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), também fez parte do roteiro para uma escuta ativa com ativistas da região nordeste, e por possuir a Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes, voltada exclusivamente para a população carcerária LGBTI+.

Reconhecendo que ainda é cedo para apontar pareceres e conclusões sobre a visita da Relatora LGBTI ao país, Raça e Igualdade traz ao seu público um panorama das impressões compartilhadas por Roberta Clarke após conversar com mais de 15 organizações do movimento LGBTI+ nos estados visitados. As impressões da Relatora sobre a situação da população LGBTI+ no país também foram relatadas durante o evento público realizado no Rio de Janeiro; “Construindo Pontes: Direitos das Pessoas LGBTI+ em Perspectiva Interseccional”, realizado por Raça e Igualdade.

Durante a semana em que a Comissionada esteve no Brasil duas pautas sobre direitos LGBTI+ – já conquistados – estavam em discussão em âmbito nacional. Uma delas refere-se ao casamento civil igualitário que, por inserção do avanço de políticos de extrema direita no Congresso Nacional, voltou a ser questionado em sua validade. Desde 2011 e 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) equipararam a união civil homoafetiva com a heteroafetiva; no entanto, o Projeto de Lei nº 5.167/2009 visa anular esse direito. Embora tenha sido adiada duas vezes devido à pressão de Deputades LGBTI+, a votação segue suspensa, mas pode voltar a pauta no Senado. A outra pauta que estava em discussão, refere-se a uma manipulação também orquestrada pela crescente ideologia anti-gênero que criou um movimento para atacar o uso dos banheiros unissex. O fomento da intolerância por parte de atores políticos conservadores criou uma falsa ideia de que essa era uma pauta urgente em votação.

Fatos estes que, para a Comissionada, refletiram uma outra realidade brasileira, uma vez que dentre os países da região, o Brasil se destaca entre os que mais avançou sobre os direitos LGBTI+. Nesse sentido, Roberta Clarke manifestou preocupação com o que está acontecendo no país e, particularmente, com o tema da violência política de gênero, um tema que tem sido denunciado recorrentemente à CIDH. Para ela, a propagação do discurso de ódio e o crescimento do movimento anti-gênero leva a necessidade de reflexão e de um trabalho em união do movimento social e de lideranças LGBTI+. Isto é, organizar-se estrategicamente para perceber quando vale despender esforços aos ataques de conservadores que visam somente propagar fake news para desarticular a sociedade civil e interromper os encaminhamentos da agenda política LGBTI+.

Diante destes retrocessos, a Comissionada demonstrou sua solidariedade e destacou que a possibilidade de ter vivenciado diferentes contextos pelo país a fez entender, de forma interseccional, os diversos tipos de violência que afetam diferencialmente a comunidade LGBTI+. Mesmo reconhecendo os progressos alcançados através da luta histórica pela visibilidade e direitos, a escuta atenta dos ativistas revelou que ainda há muito por avançar. O momento atual do país demonstrou a existência de uma forte pressão por parte da extrema direita para destruir o progresso alcançado através de políticas de equidade de gênero e de reconhecimento de direitos LGBTI+, e como por meio da propagação de discursos de ódio, pessoas trans sentem-se cada vez mais ameaçadas e sem acesso a direitos básicos.

Assim, Roberta afirmou o compromisso da CIDH na atenção do que estará se passando no país nos próximos meses, visto que o Brasil é um país de dimensão continental e o que se passa em seu território influencia politicamente toda região.

Entre seu diálogo com o movimento social, a Relatora declarou preocupação com as dificuldades relatadas nas documentações exigidas para o processo de retificação civil de nome e de gênero; as diversas formas de violência contra as mulheres lésbicas e a lacuna na provisão de políticas públicas que atendam às suas especificidades, desde a falta de recolhimento de dados à ausência de políticas na área de saúde. Ademais, as mulheres lésbicas relataram veementemente a exclusão social que vivenciam ao demonstrarem afetos em público, práticas de estupro corretivo e de terapias de conversão, além da expulsão de seus lares ao assumirem sua orientação sexual.

A partir da conversa com transmasculinos e transmasculines, a Comissionada pode perceber como a violência enfrentada entre eles/elus é atravessada principalmente pelas questões de raça, classe e território, principalmente no que se refere à violência policial. No Ceará, o tema da educação foi um grande mote entre os ativistas LGBTI+, destacando-se a necessidade de políticas de inclusão escolar já que, diversos estudantes LGBTI+ abandonam suas instituições de ensino, seja por práticas de LGBTIfobia, bullying, desrespeito a identidade de gênero, entre outras formas de discriminação, e nem sequer chegam a concluir o ensino fundamental. Nesse contexto, no dia 19 de setembro, o Conselho Nacional pelos Direitos da População LGBTQIA+, publicou uma resolução estabelecendo diretrizes para garantir a inclusão e respeito à identidade de gênero nas instituições de ensino.

Em Brasília, além da agenda com gabinetes ministeriais, Roberta Clarke encontrou-se com a diretoria do Conselho Nacional LGBTQIA+ e teve a oportunidade de conhecer as atuais demandas da agenda política LGBTI+, em vistas da retomada democrática no país. A reunião com ativistas da região aconteceu no Distrito Drag com uma mesa redonda que debateu temas como a necessidade de políticas de assistência social para a população LGBTI+, como o fomento das casas de acolhimento e o acesso à saúde da população trans na questão hospitalar.

Durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, a Comissionada recebeu o relatório da Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL) que versa sobre a situação das mulheres lésbicas no país; e recebeu o ‘Dossiê sobre o Lesbocídio’, após conversar com uma das autoras. Ademais, lhe foi entregue os dossiês sobre assassinato e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022; além do dossiê ‘Trans Brasil’, sobre a situação destas no sistema prisional, sendo ambos documentos realizados pela ANTRA.

Por fim, Raça e Igualdade agradece profundamente ao movimento LGBTI+ brasileiro que mobilizou ativistas de diversas regiões do país para que pudessem transmitir à Relatora da CIDH suas experiências de vida e suas trajetórias de lutas por direitos em um país que ser e existir como pessoa LGBTI+ é um ato de coragem. Além disso, agradecemos à CIDH por aceitar o nosso convite e dialogar com o movimento civil LGBTI brasileiro. Diante da nossa missão, incentivar a vinda de relatores e especialistas de mecanismos internacionais concretiza-se como mais um passo na garantia de visibilidade, não discriminação e a plena realização dos direitos humanos. Deste modo, solicitamos à CIDH que considere as seguintes recomendações ao Estado brasileiro:

1 – Criação de um Conselho Nacional para o enfrentamento ao discurso de ódio e disseminação de notícias falsas com viés interseccional, tendo em vistas à violência e os ataques sofridos pela população LGBTI+ no país;

2 – Estabelecimento de políticas e projetos de lei que garantam constitucionalmente o casamento igualitário homoafetivo, além da garantia de segurança de pessoas trans em banheiros públicos conforme suas identidades de gênero e a pluralidade de banheiros unissex;

3 – Levantamento de dados desagregados referentes à população LGBTI+, seja através do Censo Nacional ou através de pesquisas que fomentem a criação de políticas públicas específicas para esta população.

4 – Treinamento e políticas de educação destinadas à força de segurança pública para que estas possam garantir a segurança das pessoas LGBTI+ brasileiras.

5 – Construção de uma política de enfrentamento à violência política de gênero, com previsão de medidas de proteção a parlamentares LGBTI+.

 

Raça e Igualdade lança projeto para combater o racismo religioso no Brasil

Brasil, 18 de agosto de 2021 – Em vistas de promover a tolerância religiosa e a redução da violência e discriminação contra praticantes de religiões de matriz africana no Brasil, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) lança projeto de combate ao racismo religioso junto a organizações da sociedade civil brasileira. Com duração de dois anos, o projeto tem como objetivo capacitar e fortalecer organizações afro-brasileiras para que possam documentar casos de violência baseados na crença religiosa, prepará-las para ações de litígio estratégico internacional e, fomentar uma cultura de respeito à liberdade religiosa, além de qualificar as entidades para que possam dar apoio jurídico às vítimas de racismo religioso.

As organizações que coordenam o projeto junto à Raça e Igualdade são: ONG Criola, RENAFRO (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde) e FOPAFRO (Fórum Permanente Afro-Religioso do Estado do Pará). Essas três entidades serão responsáveis pela capacitação de terreiros nos estados da Bahia, Mato Grosso, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo. Entre as tônicas que guiam a realização dessa proposta, Raça e Igualdade entende que é de suma importância o treinamento de líderes religiosos sobre as leis nacionais que versam sobre discriminação racial, documentação de violação de direitos humanos e a defesa de direitos. Essas entidades apresentarão suas documentações às principais autoridades locais, estaduais e federais, bem como ao sistema interamericano de direitos humanos e à ONU, e advogar para que o Brasil seja responsabilizado internacionalmente.

Ademais, o fortalecimento de lideranças comunitárias e religiosas apresenta-se como uma oportunidade ímpar pois, em 2022, o Brasil será revisado pelo comitê das Nações Unidas que fiscaliza a Convenção Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD). Logo, a documentação e visibilização dos casos de racismo religioso no país é salutar para que a sociedade civil possa cobrar e responsabilizar os governos brasileiros, pressionando-os a cumprir suas obrigações internas com base em seus compromissos internacionais de direitos humanos.

Outro ponto em destaque neste projeto é a sensibilização da mídia e de advogados que se dedicam ao tema de racismo religioso no Brasil. Visto que a mídia, especialmente jornais e noticiários de TV, desempenham um papel fundamental na perpetuação de estereótipos negativos contra as religiões de matriz africana, a capacitação de jornalistas visa quebrar paradigmas e desmistificar as narrativas vigentes que, por diversas vezes, além de silenciar os praticantes dessas religiões, apoiam-se em dogmas de religiões judaico-cristãs. Por sua vez, faz-se urgente a preparação de um corpo jurídico que atenda as crescentes denúncias dos casos de racismo religioso e suas vítimas e, com isso, esse projeto também busca ampliar e promover programas educacionais que qualifiquem redes de advogados no país.

Entre os resultados esperados, o respeito e a promoção da liberdade religiosa é o ponto em questão para que as atividades do projeto possam contribuir para uma mudança de paradigma a nível nacional e internacional. Para Carlos Quesada, Diretor Executivo de Raça e Igualdade, o legado deste projeto também está em seu efeito multiplicador, pois as atividades de capacitação visam criar uma rede informal de direitos humanos para defender a liberdade religiosa no Brasil e, assim, as organizações desenvolvam autonomia para documentar, denunciar e abordar as violações dos direitos humanos. Além disso, Quesada aponta que, no cenário internacional, há um desconhecimento sobre racismo religioso no Brasil.

“Há uma falácia cultural de que o Brasil é um país no qual todos podem exercer suas crenças religiosas livremente. Porém, o racismo estrutural se manifesta também nas religiões e, o que vemos, atualmente, são desde terreiros incendiados a progenitores que perdem a guarda de seus filhos por expressarem sua fé. Desse modo, a violência manifestada pela intolerância religiosa fere os princípios dos direitos humanos. É preciso visibilizar esses casos internacionalmente e fomentar uma conscientização a nível nacional”, afirma Quesada.

Portanto, Raça e Igualdade reconhece que o racismo religioso é uma problemática que precisa ser combatida no Brasil com criação de políticas públicas e implementação de leis que já foram aprovadas. De acordo com dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em 2019, houve um aumento de 56% nas denúncias/agressões por intolerância religiosa – 356, contra apenas 211 em 2018 [1]. A maioria das vítimas era adepta das religiões do candomblé e umbanda [2]. Além disso, Dados do Disque 100,  uma linha telefônica para denúncias de violência, demonstra que, entre 2015 e 2019, foram feitas 2.712 denúncias de violência religiosa no Brasil. Entre essas comunicações, 57,5% eram de religiões de base africana [3].

Desse modo, junto as organizações afro-brasileiras, Raça e Igualdade reafirma o compromisso em denunciar e combater violações de direitos humanos discriminatórias. A intolerância religiosa fere o direito à igualdade, à liberdade de crença e de expressão, além de fomentar ações de violência e uma cultura de ódio que atinge, principalmente, as populações vulnerabilizadas pelo racismo estrutural e pela LGBTIfobia. Com isso, ao longo deste projeto denunciaremos casos de negligência, racismo e discriminação que afetam a democracia religiosa no Brasil.

[1] https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019

[2] As duas tradições religiosas afro-brasileiras mais conhecidas são o candomblé e a umbanda. O candomblé foi formado por negros africanos escravizados, enquanto a umbanda foi criada no Brasil no início do século passado. Existem algumas diferenças entre as duas tradições. Os cantos do candomblé são executados em línguas de origem africana, como iorubá ou kimbundo. Na umbanda, são cantadas principalmente em português. Outra diferença é a prática do sacrifício de animais. Embora, a princípio, não haja sacrifício de animais na Umbanda, no Candomblé, a prática é realizada, como forma de circular a energia que anima tudo no mundo: o axé. Mais do que religiões, essas tradições ostentam práticas sociais, culturais e espirituais no continente africano.

[3] https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/ouvidoria/balanco-disque-100

 

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