Entrevista com Jurema Werneck: a voz das Ialodês ressoando no Dia da Consciência Negra

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Brasil, 20 de novembro de 2021 – Para celebrar o Dia da Consciência Negra, simbolizado no Brasil em memória ao falecimento do líder quilombola Zumbi dos Palmares, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), tem o orgulho de compartilhar uma entrevista com Jurema Werneck, uma das principais referências do movimento […]

Entrevista com Jurema Werneck

Brasil, 20 de novembro de 2021 – Para celebrar o Dia da Consciência Negra, simbolizado no Brasil em memória ao falecimento do líder quilombola Zumbi dos Palmares, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), tem o orgulho de compartilhar uma entrevista com Jurema Werneck, uma das principais referências do movimento negro no país. Além de Diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema foi fundadora da ONG Criola, é médica com mestrado em engenharia de produção e doutorado em comunicação e cultura. Sua carreira profissional é a prova de que a perspectiva interseccional é fundamental para construir saberes plurais e uma visão diversa do mundo e da sociedade que nele se constitui.

Se o dia 20 de novembro nos faz reviver uma memória de luta por consciência racial e liberdade negra, Jurema Werneck é a personificação das Ialodês, que como bem ela descreve em uma publicação [1], “Ialodê se refere também à representante das mulheres, a alguns tipos de mulheres emblemáticas, lideranças políticas femininas de ação fundamentalmente urbana (…) aquela que fala por todas e participa de instâncias de poder (…) que se colocam como agentes políticos de mudança, detentoras principais das riquezas conquistadas”. Assim, saudamos a oportunidade de apresentar um resumo de uma longa conversa com a Ialodê Jurema Werneck, que dividiu conosco suas percepções sobre a luta pelos direitos humanos, violência policial, feminicídio e mulheres negras, além da sua participação na CPI da Pandemia, cujo relatório final foi entregue em outubro no Senado brasileiro.

Pandemia de COVID-19

Raça e Igualdade – Sua participação na CPI da Pandemia mostrou ao Brasil as consequências do negacionismo e que, somente no primeiro ano, 120 mil vidas poderiam ter sido poupadas se tivéssemos seguidos os protocolos mundiais e uma política efetiva de saúde pública. Poderia nos contar como foi a experiência de participar da CPI da pandemia? Você acredita que vai haver consequências para o governo atual?

Jurema Werneck – A CPI da Pandemia nos ajuda a ver pelo menos que vale continuar insistindo para mostrar a população que tudo o que foi feito durante a pandemia estava errado e demonstrar quais são os tipos de pessoas que estão no Governo. Pessoas que não têm nenhum compromisso com ética, na verdade o compromisso deles é se apropriar da coisa pública e lucrar com o país. Então, eu vejo que essa ‘novela’ que se tornou a CPI da Pandemia, de certa forma lembra para a gente que existe uma camada de interesses e que o povo está sentindo o impacto disso tudo. E com isso, a aprovação do governo despenca, porque é fato, não tem governo, é desgoverno.

Participar da CPI foi um trabalho coletivo. Eu só fui a porta voz de várias organizações e não só da Anistia Internacional. Nós combinamos que eu seria porta-voz, então o meu trabalho foi me preparar e apresentar a pesquisa que foi encomendada já mesmo antes da CPI, e realizada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP). Era uma pesquisa para ser apresentada para o próprio Governo Federal, mas ele estava muito refratário a qualquer pressão, então vimos na CPI uma oportunidade de apresentar. Nós propomos ao Senador relator, Renan Calheiros, e ele aceitou. Isso ajudou também a legitimar uma percepção dele e de parte da sociedade de que tudo poderia ter sido diferente. Logo, o nosso trabalho foi demonstrar que mesmo sem vacina [2] poderia ter salvo vidas se o básico da saúde pública tivesse sido feito. Fora isso, pessoalmente, foi mais um momento de ativismo cotidiano, eu fui lá fazer o que queria fazer, então eu achei um privilégio.

E agora, com mais de 600 mil vidas perdidas e num cenário em que já existe a vacina para enfrentar a pandemia, porém, o governo negacionista continua no poder. Como continuar enfrentando a pandemia nos próximos anos?

Jurema Werneck – Nós o chamamos de negacionista, mas ele não é negacionista. No sentido de que ele tem uma aliança frontal com as estratégias de morte destruição. Há um projeto político, é uma trajetória ativamente definida. Não é não é só uma recusa, é um fazer no movimento contrário em relação a vida, ou seja, extremamente perigoso. O que mantém o Brasil inteiro, e não apenas quem não gosta dele, sob tortura permanente. É um torturador convicto que mantém a gente sob tortura, seja a partir da gestão da pandemia, seja partir de qualquer outro capítulo da “administração” dele.  E aí o que a gente faz a partir daí? Temos que lembrar que não foi só ele, a pandemia tem responsabilidade também a nível estadual e municipal. A Anistia lançou uma campanha ano passado direcionada a governadores e prefeitos, às autarquias por conta dos direitos indígenas e quilombolas, e lembramos que era responsabilidade de todo mundo e não apenas da legislação, mas que o funcionamento do sistema demonstra uma responsabilidade solidária. Então, ou seja, a gama de gente envolvida nessa produção de 600 mil mortes não é um uma tarefa simples.

Vejo que isso também tem um rebatimento na sociedade e de certa forma em todos nós. 600 mil mortes é muita tragédia e por trás dessas mortes tem um contingente imenso de enlutados, temos os órfãos, temos os sequelados da COVID-19. O legado que tem está fora da ética, da política e da saúde pública; com mais o aprofundamento das desigualdades sociais. Foram as mulheres negras que pagaram o preço mais alto e as que mais morreram de COVID-19 no princípio. Ou seja, a quantidade de desafios e de sequelas que a temos para enfrentar é muito grande.

Violência Policial

Raça e IgualdadeRecentemente, Michelle Bachelet, Comissária da ONU de direitos humanos, denunciou em seu relatório sobre violência policial e racismo sistêmico a dimensão que a letalidade dessa violência opera na vida das pessoas negras, e citou o caso de Luana Barbosa e de João Pedro no Brasil. A partir de uma perspectiva interseccional, pessoas LGBTI+ negras, principalmente pessoas trans em situação de cárcere, estão entre as vítimas dessa engrenagem racista e LGBTIfóbica. De que forma podemos enfrentar o racismo e a LGBTIfobia em nossa segurança pública quando se trata de uma sociedade que considera corpos negros como corpos matáveis e descartáveis?

Jurema Werneck – A primeira forma da gente atuar nesse tema é reconhecer e dar a dimensão de emergência que tem, porque são casos de vida e de morte. Porque eles estão matando pessoas. Pessoas estão morrendo fisicamente e existencialmente. Hoje em dia a situação está tão ruim que eu estou celebrando as pequenas vitórias das conquistas discursivas. Desde que a Anistia Internacional começou a trabalhar com a letalidade policial e morte de jovens negros, temos incidido no Alto Comissariado da ONU sobre o tema. É bom ver que a Michelle Bachelet falou sobre isso porque era a sua obrigação, mas ainda é uma pequena vitória. Isso não vai salvar a vida da Luana, infelizmente, porque ela já morreu, mas nós temos trabalhados em situações muito dramáticas, nossos indicadores são de morte. Não é de malcriação porque o policial olhou de cara feia para nós, é de assassinato. Então a nossa situação é muito dramática e muito terrível. E temos que partir desse indicador que é a ponta do iceberg mais sangrento.

O movimento negro vem trabalhando com isso há muito tempo. Em 1978, a razão que reuniu representantes de federações de várias organizações nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, para criar o Movimento Unificado contra a Violência Policial, que depois chamou-se de Movimento Negro Unificado (MNU), foi por conta do assassinato de um jovem negro. Mas passamos de 1978 até muito recentemente falando sozinhos. Não tinha Nações Unidas, não tinha organização branca e nem organizações de direitos humanos. Não tinha lei nacional que versasse sobre raça, era só nos Estados Unidos. Nos custou muita luta. Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e Amauri Mendes, entre muitas pessoas do movimento estavam naquele momento tentando hegemonizar essa luta. O que eu estou dizendo é que temos pequenas vitórias, mas que não são suficientes. O que nós queremos é salvar vidas agora, nesse exato instante porque alguém está sendo morto agora. E isso não é suficiente, e essa é a nossa angústia. O processo político de transformação é demorado, não salva todas as vidas que precisaria.

Não conseguimos contabilizar o quanto da fala de Bachelet influencia para salvar vidas, mas acaba de certo modo acaba influenciando, não apenas porque bota um freio em determinadas mãos, em alguns dedos que estão no gatilho, porque afinal são as Nações Unidas. Em compensação tem outros que lhes ignoram, porque o presidente falou outra coisa e eles vão ouvir o presidente, então. Se temos o presidente de um lado e a Bachelet de outro, estamos tentando uma estratégia de empate. Estamos tentando empatar o jogo para nos dar um espaço para continuar lutando.  Como ativista não vejo uma saída que não seja de luta. O processo político se move como uma conjuntura, sabemos onde queremos chegar que é na manutenção da vida das pessoas.  Quanto tempo isso leva? Sabemos que não é uma trajetória linear. Que ferramentas são necessárias? Todas. A mudança só se faz com luta.

Feminicídio e Mulheres Negras

Raça e Igualdade – O ‘Atlas da Violência 2021’ veio a confirmar a infeliz estatística de que as mulheres negras são as maiores vítimas da violência no Brasil: 66% das mulheres assassinadas, mostrando que em 11 anos, o homicídio dessa população aumentou 2%, enquanto o assassinato de mulheres não negras caiu 27% no mesmo período (3). Poderia comentar sobre essa violência racista que torna as mulheres negras as maiores vítimas do feminicídio.

Jurema Werneck – Nos regimes racistas, negros e negras serão as maiores vítimas da violência. Qualquer que seja a classificação da violência. Seremos as maiores vítimas junto com os indígenas e com os ciganos. É inescapável e por isso que a gente quer acabar com o racismo. Não é de hoje que o Atlas da Violência demonstra isso. Conseguimos influenciar o governo e a ONU Mulheres para fazer as estatísticas e demonstrar o que a gente já sabia; somos as maiores vítimas.  A complexidade desse fenômeno significa lembrar que o racismo é patriarcal e cis-heteronormativo, como diz a ONG Criola. Então, nesse miolo de interseccionalidade temos a fotografia das vítimas; são as trans negras e as mulheres cis negras. Vale lembrar que as trans não estão nessa estatística de feminicídio e, ainda assim, sabemos que a vitimização entre elas é ainda maior do que entre as mulheres cis. É importante ressaltar que também somos vítimas de homicídios fora das relações de gênero, dos homicídios pela polícia.

O que estou tentando dizer é: pegue uma estatística de morte que você vai encontrar a mulher negra lá. Nesses últimos anos fomos nós que hegemonizamos esse discurso. Contudo, ainda faltam muitos avanços, ainda mais agora que tudo foi desmontado.  No debate para criação da Lei Maria da Penha, já dizíamos que tinha que se colocar um mecanismo para enfrentar o racismo, porque as mulheres negras eram as maiores vítimas. O Brasil até hoje comemora essa lei, mas aquelas pessoas que construíram e hegemonizaram a Lei Maria da Penha excluíram e se recusaram a colocar os mecanismos para proteger a vida das mulheres negras. São essas pessoas que dizem que temos que ir à polícia, mas desde quando polícia é aliada de mulher negra ou de qualquer pessoa negra? Ou seja, é preciso enfrentar o racismo e denunciá-lo onde quer que esteja. A Lei Maria da Penha funciona para mulheres brancas porque ela foi construída para isso.  Precisamos encontrar um outro mecanismo ou reformar esse para funcionar também.

Em meio às lutas e desafios da população negra brasileira compartilhados por Jurema Werneck nesta entrevista, Raça e Igualdade reafirma a importância da perspectiva antirracista no enfrentamento das violências e das opressões que invisibilizam e desumanizam o povo negro. É através do comprometimento com uma agenda antirracista e feminista, e no enfrentamento das políticas neoliberais de esvaziamento de direitos, que vislumbramos um horizonte de responsabilidade coletiva e de um futuro em que os direitos humanos sejam, de fato, uma possível linguagem de respeito à todas as formas de ser e existir. Assim, recomendamos ao Estado Brasileiro que:

1 – Implemente políticas de reparação para as famílias vítimas de COVID-19; sejam os órfãos, os enlutados e as pessoas que passaram a viver com sequelas devido à doença;

2 – Produza indicadores interseccionais sobre a letalidade policial sobre as mulheres negras;

3 – Implemente a Convenção Interamericana contra o Racismo como instrumento legal para alterar e criar leis de enfrentamento ao racismo.

[1] Texto “De Ialodês e Feministas: Reflexões sobre a ação política de mulheres negras na América Latina e no Caribe”

[2] Na época da pesquisa e de sua apresentação na CPI ainda não havia vacina para COVID-19

[3]https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/08/31/atlas-da-violencia-2021.htm

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