Fechamento dos Espaços Cívicos: Raça e Igualdade, Criola, Geledés e Iepé em prol da participação democrática da sociedade civil negra e indígena
Brasil, 23 de fevereiro de 2022 – o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) através do Consórcio Latino-Americano de Direitos Humanos, uniu-se as organizações da […]
Brasil, 23 de fevereiro de 2022 – o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade) através do Consórcio Latino-Americano de Direitos Humanos, uniu-se as organizações da sociedade civil brasileiras; Criola, Geledés – Instituto da Mulher Negra e ao Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), para visibilizar a situação sobre a participação da sociedade civil organizada nos espaços cívicos do Brasil. Com foco nas populações negra e indígena, a pesquisa visa conduzir a um relatório para denunciar perante aos mecanismos internacionais de direitos humanos, os vigentes marcos normativos que restringem a liberdade de associação, limitam a liberdade de expressão e extinguem os canais de participação cidadã no país.
Em vistas da atual conjuntura global de tensões democráticas, durante os últimos anos os países da América Latina vêm enfrentando uma crescente série de restrições e ataques que ameaçam a participação da sociedade civil organizada em espaços de decisões de poder. Ou seja, o pleno funcionamento da democracia, na qual o poder do povo vai muito além das urnas eleitorais, com o fechamento e/ou acirramento dos espaços cívicos as medidas restritivas agravam as duras condições que as organizações da sociedade civil enfrentam diariamente há décadas, incluindo detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e assassinatos de defensores dos direitos humanos.
Somado a esse cenário difícil, a pandemia da COVID-19 afetou particularmente a região. Embora alguns países estejam entre os maiores números de infecções e mortes no mundo, a distribuição desigual de vacinas, o acesso precário aos sistemas de saúde, a queda acentuada do emprego e a falta de sistemas de proteção social, deixaram evidências de que as fragilidades institucionais e estruturais que afetam, especialmente as populações mais vulneráveis, se intensificaram. Sob o pretexto de manter a segurança, a pandemia também tem sido utilizada pelos governos da região para impor maiores restrições à circulação, associação e liberdade de expressão, limitando ainda mais os espaços de participação da sociedade civil e dos cidadãos.
Para David Alvarez Veloso, Coordenador Regional de Raça e Igualdade para o Consórcio de Direitos Humanos, esse projeto é de suma importância para o desenvolvimento e fortalecimento democrático dos países nos quais as organizações da sociedade civil desempenham um papel ativo na vida política e social, para documentar e tornar visíveis as crescentes restrições e obstáculos que reduziram os espaços de participação. “Com o apoio do Consórcio de Direitos Humanos, e graças ao trabalho de organizações como Criola, Geledés e Iepé no Brasil, entre outras, temos informações comparativas e atualizadas sobre os efeitos que essas medidas têm nas diferentes populações do país. Desse modo, é possível capacitar lideranças para fortalecer a proteção dos direitos humanos e articular estratégias de advocacy a níveis nacional e internacional, visando acabar com as restrições à participação cidadã”, explica Alvarez.
Brasil e um histórico crescente de ameaças a participação da sociedade civil
Foi a partir do fim do período ditatorial no Brasil que a sociedade civil passou a alcançar voz e participação cidadã para construção de novas perspectivas para um pleno Estado democrático de direito. Em 1988, com a vigência de uma nova Constituição Federal, passou-se a vigorar uma conjectura política que prezava por mais transparência de dados, informações, orçamento público e, também, como uma nova janela de oportunidades e direitos para os grupos historicamente excluídos, como as populações negra, indígena e LGBTI+. No entanto, desde 2014, com aprovação de emendas constitucionais ainda no governo Dilma Roussef – como a PEC antiterrorismo e as seguintes sanções relacionadas a segurança do Estado até o golpe de Estado, em 2016, que ocasionou seu impeachment – as relações da sociedade civil com o Estado acirraram-se profundamente.
Por conseguinte, essas medidas restritivas representaram um golpe também à sociedade civil, pois diante desses novos pacotes de leis, as manifestações públicas passaram a ser entendidas como manifestações contrárias aos interesses do Estado. No entanto, o que vem sendo denunciado pela sociedade civil organizada é que durante o atual Governo, presidido por Jair Bolsonaro, os espaços de diálogo e de garantia de direitos é praticamente nulo e envolto numa dinâmica de perseguição, violência, vigilância e até mesmo morte de defensores de direitos humanos. As organizações denunciam que mesmo não havendo um decreto militar ou ordem legal de fechamento dos espaços cívicos, a presente relação do Executivo com a sociedade civil impede o debate das pautas e a apresentação das demandas sociais. Em suma, não há diálogo.
Consequências para as populações negras e indígenas no Brasil
Em novembro de 2021, Raça e Igualdade promoveu o webinar “Fechamento de espaços de participação: ameaças à sociedade civil no Brasil, Honduras e Guatemala”, no qual contou com a presença de representantes de organizações da sociedade civil, juntamente com a vice-presidente da Costa Rica, Epsy Campbell Barr, para denunciar e delinear propostas para o fortalecimento regional da sociedade civil. O evento virtual contou com a participação de Lúcia Xavier, Coordenadora Geral de Criola, que expôs o quadro de perseguição aos defensores de direitos humanos e violações à democracia que vulnerabilizam ainda mais pessoas negras e indígenas, com total apagamento de suas agendas políticas.
Segundo Lúcia Xavier, esses ataques refletem-se desde à violência política que mulheres negras; cis e trans, vêm sofrendo com anuência ou menosprezo do Executivo, até mesmo a falta de acesso às informações públicas que no auge da pandemia, fez-se necessária uma criação de um consórcio entre setores públicos e privados para que a população pudesse acompanhar os casos. Ademais, Lúcia destacou a morte de defensores de direitos humanos tanto nas cidades quanto nos campos, e que mesmo os programas de proteção não estão sendo capazes de constituírem-se como perspectiva de saída para o problema e nem para a defesa destes.
“A Constituição brasileira garante a cidadania e participação da sociedade civil organizada em todas as políticas. Esses setores não estão fechados, esses conselhos funcionam, mas a capacidade de admitir e dialogar com outros setores da sociedade não existe mais. Portanto, também não existe o monitoramento e acompanhamento das políticas e orçamento público no Brasil. Basicamente, essas legislações imobilizam o formato de participação da sociedade civil, lembrando que qualquer manifestação pode ser considerada como terrorismo e ameaça a segurança nacional”, enfatizou Xavier durante o evento. [1]
Diante deste quadro de retirada de direitos e de silenciamento, o papel questionador e de busca por justiça das organizações da sociedade civil revela-se como um caminho de diálogo para as populações em situação de vulnerabilidade. No entanto, Rodnei Jericó da Silva, Coordenador do SOS Racismo do Geledés, vê com apreensão a agenda eleitoral de 2022, na qual acredita que irá sobrepor qualquer incidência da sociedade civil, mas a depender do resultado das eleições há um caminho para mudanças e para a participação da sociedade civil nos espaços de decisões.
“A população brasileira é majoritariamente negra, políticas públicas ou mesmo políticas sociais são debatidas em espaços em que havia participação da sociedade. Desta forma o prejuízo a coletividade é enorme, pois o público-alvo não sendo ouvido, indica que a possibilidade de erro e de inefetividade é muito maior. Os espaços de participação melhoram o sistema democrático, fortalecem a sociedade, que se sente integrante do processo, e em conjunto busca solução aos problemas”, afirma Jericó.
Neste sentido, a luta da população indígena para não ser completamente dizimada pelo atual Governo tomou mais força com o esvaziamento das instituições públicas que deveriam zelar pela segurança e direitos indígenas, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), além dos ataques às comunidades e aos seus territórios por todo o país. Em 2021, a votação do Marco Temporal [1], até hoje suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visa retirar a posse de terras indígenas garantidas pela Constituição. De acordo com Luis Donisete, Coordenador-Executivo do Iepé, o fechamento dos espaços públicos de políticas indigenistas e ambientais no Brasil, tiveram grandes implicações para o exercício da participação cidadã e controle social indígena.
“O viés antidemocrático e anti-indígena do atual governo foi transformado em orientação para as políticas do Estado brasileiro, contrárias ao ativismo e à atuação da sociedade civil organizada. O resultado disso foi o abandono de programas e políticas governamentais que implementavam direitos consagrados na nossa legislação em diferentes áreas: saúde, educação, cultura, gestão territorial, proteção das terras indígenas. Hoje não existem mais canais de interlocução entre representantes indígenas e diferentes órgãos governamentais. É um enorme retrocesso que vai exigir anos e muita dedicação para ser reconstruído”, denuncia Donisete.
Nesse contexto de incertezas, denúncias e silenciamento da sociedade civil no Brasil, Raça e Igualdade faz um chamado aos mecanismos internacionais de direitos humanos para um quadro que pode se agravar ainda mais com as eleições em curso no país em 2022. Considerando os retrocessos e as limitações à participação cidadão mencionadas acima, e para fortalecer o papel da sociedade civil na vida democrática, é importante que o Estado brasileiro avance, entre outros, em:
1 – Conforme previsto constitucionalmente e nas leis, garantir a participação política da sociedade civil organizada nas instituições públicas e espaços de decisão de poder, com efetivo acompanhamento e monitoramento das políticas e orçamento público;
2 – Garantir a transparência no acesso às informações públicas e realização de coleta de dados para construção de políticas públicas interseccionais, conforme previsto pela Lei de Acesso à Informação;
3 – Fortalecer o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que vem sofrendo desmonte especialmente em razão da baixa execução orçamentária, como também pelo enfraquecimento da participação popular no Conselho Deliberativo do PPDDH. [2]
4 – Criar conselhos de participação da sociedade civil levando em conta as distintas realidades da população brasileira. Os conselhos devem atender as especificidades e ser espaço de escuta e decisão para as populações mais vulnerabilizadas, dentre estas: negra, indígena, quilombolas e povos ciganos.
[1] Esses conselhos funcionam teoricamente, mas na prática não têm capacidade de incorporar a perspectiva da sociedade civil.
[2] https://g1.globo.com/politica/ao-vivo/supremo-julgamento-marco-temporal-terras-indigenas.ghtml
[3] https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Relatorio—Comeco-do-Fim.pdf