O Brasil das 600 mil mortes: a crise da democracia representativa no país das fake news

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Brasil, 08 de outubro de 2021 – Sob a égide de um presidente que em meio a uma pandemia continua a incitar multidões e a desprezar todos os protocolos sanitários mundiais, o Brasil alcançou a marca de 600 mil mortes por COVID-19 neste mês de outubro. Em 2 anos de (des)governo, Jair Messias Bolsonaro já […]

Brasil, 08 de outubro de 2021 – Sob a égide de um presidente que em meio a uma pandemia continua a incitar multidões e a desprezar todos os protocolos sanitários mundiais, o Brasil alcançou a marca de 600 mil mortes por COVID-19 neste mês de outubro. Em 2 anos de (des)governo, Jair Messias Bolsonaro já foi chamado de negacionista, no entanto, as investigações em curso vêm a comprovar que o papel da COVID-19 foi central para o governo Bolsonaro implementar estrategicamente sua política de morte e exclusão. Mais do que negar a existência de uma pandemia, pode-se dizer que o Presidente foi e continua sendo o ‘garoto propaganda’ da COVID-19, um ativista e disseminador do vírus que, através de seus discursos inflamados e radicais, instaurou a crise da democracia representativa no país cuja tônica é a propagação de informação falsas junto ao desrespeito dos direitos humanos.

A escalada de poder do governo bolsonarista encontrou no ‘mito’ Jair Bolsonaro, a personagem certa que fala em nome de um Deus cristão e da família tradicional brasileira, numa tentativa de evocar a ordem e o patriotismo, para restaurar um país afundado na lama de incertezas e na corrupção sistêmica. Em uma aliança política com partidos de centro e de direita, além da sua obediente cúpula ministerial, a família do Presidente desvela-se como ponto focal nos escândalos de corrupção do governo. Fatos estes que facilitaram e permitiram uma sequência de leis aprovadas, decretos assinados e reformas polêmicas com a anuência do parlamento legislativo.

Diante deste cenário, as instituições públicas, organizações da sociedade civil e lideranças ativistas que zelam pelo Estado democrático de direito e pela garantia dos direitos humanos, tornaram-se o alvo do projeto político bolsonarista que vão desde ataques de ódio físicos e/ou virtuais ao cerceamento dos espaços de representatividade e participação cidadã. Um projeto político que se ancora na ampliação das desigualdades, fake news e retirada de direitos da sua população, entre as quais, as mais afetadas já se encontravam em situação de vulnerabilidade, como as populações negra, quilombolas, indígenas e LGBTI+.

Nesse sentido, através desta carta editorial, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), urge a comunidade internacional para um manifesto conjunto em que se inste o Estado brasileiro à transparência das informações e respeito à independência dos órgãos federais e das instituições; como às Universidades, Polícia Federal e Supremo Tribunal Federal para o livre exercício da liberdade de expressão, garantido pela Constituição Federal, e para o andamento imparcial das investigações sobre o governo Bolsonaro. Afinal, quais são os jogos de interesse de um Presidente autoritário que impôs sigilo de até 100 anos ao seu cartão de vacinação e aos crachás dos seus filhos sobre o acesso dos mesmos ao Palácio do Planalto?

A seguir um panorama atualizado das articulações de poder que estão desencadeando a crise da democracia representativa no Brasil de 600 mil vidas perdidas para a COVID-19. A segunda nação com maior taxa mortalidade e que ocupa o 62º lugar no ranking global de aplicação de vacinas contra o coronavírus (1). Até o momento, 44,61% da população brasileira se encontra totalmente imunizada.

CPI da COVID-19 – Instaurada em abril de 2021 e com prazo de conclusão para novembro deste ano, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dirigida pelo Senado Federal, visa investigar as irregularidades nas políticas do governo Bolsonaro no combate a pandemia no país. Desde seu início foi desencadeada uma série de escândalos que vêm a comprovar que além de um grande esquema de corrupção na compra de vacinas 1000% mais caras, o governo também atuou para que a operadora de saúde privada `Prevent Senior´ recomendasse o ´Kit Covid`, no qual consta um pacote de remédios comprovadamente ineficazes para o tratamento da COVID-19, fazendo de seus pacientes cobaias humanas para os interesses lucrativos e escusos do Governo Federal. Foi comprovado também, que somente no primeiro ano de pandemia 120 mil vidas poderiam ter sido poupadas se o Brasil tivesse seguido os protocolos mundiais e uma política efetiva de saúde pública.

Além disso, o estudo também trouxe à tona o recorte da desigualdade de raça, classe e gênero nas mortes pandêmicas. Entre as mortes evitáveis, constatou-se que a população negra foi severamente atingida, por possuir o risco 17% maior de morrer na rede pública. Logo, esta CPI está revelando os meandros de uma necropolítica que sublinhou perante toda nação que “óbito também é alta”.

Eleições 2022 e Inquéritos Judiciais – Das manobras do governo Bolsonaro durante a pandemia, o apelo populista e o desrespeito as instituições democráticas seguem o curso do seu plano de reeleição. Em ataques vorazes ao sistema eleitoral brasileiro, o Presidente fez campanha pela volta do voto impresso e, mesmo após derrota, continuou atacando a legitimidade e confiabilidade do atual modelo de eleições do Brasil. Entretanto, visando garantir sua reeleição, Bolsonaro segue aprovando leis e decretos que retiram direitos da população e beneficiam setores políticos e privados da sociedade, ou seja, a elite econômica.

Entre os quais podemos citar: Fundo Eleitoral, que prevê o orçamento dos partidos para a realização das campanhas eleitorais e que mesmo com vetos pode retirar R$3,5 bilhões da saúde em 2022; Minirreforma Trabalhista, que precariza ainda mais as condições de trabalho e torna a justiça do trabalho inacessível para o trabalhador; Lei antiterrorismo, já aprovada na Câmara dos Deputados, esta lei prevê a criação de uma polícia secreta para Bolsonaro e a aprovação do excludente de ilicitude dos agentes de segurança pública, fato denunciado pela sociedade civil como uma licença para matar. Esta lei foi criticada até mesmo pela Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que considerou o seu texto uma ameaça aos ativistas de direitos humanos e às entidades da sociedade civil; PL da Grilagem, favorecendo o desmatamento e a impunidade nos crimes ambientais, este projeto de lei é um dos subterfúgios da bancada ruralista para a ocupação de terras públicas.

Mesmo diante de todos esses esquemas para se manter no poder, Bolsonaro é investigado em cinco inquéritos que estão em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Do inquérito das fake news às irregularidades na compra de vacinas Covaxin, aliados do governo também estão sendo investigados por ataques à democracia e às instituições do Estado. Além disso, seus filhos, Carlos, Eduardo e Renan Bolsonaro, e sua mulher Michele Bolsonaro, também são investigados por diversos crimes, entre os quais são suspeitos de encabeçarem uma organização criminosa à corrupção passiva. Nesse período, Bolsonaro agiu mais uma vez contrariamente à transparência de informações e sancionou um orçamento secreto para 2022, em que mantém em seu poder a liberação de recursos em troca de votos na casa legislativa.

Protestos pelo impeachment de Bolsonaro aos atos antidemocráticos – Com uma crescente rejeição ao governo vigente manifestações eclodem pelo país em prol do impeachment de Bolsonaro. Até mesmo partidos que fizeram campanha pela eleição do Presidente, se organizaram em atos pelo fim do seu governo. Com o mote ‘vacina no braço e comida no prato’, organizações da sociedade civil denunciam a barbárie racista e genocida aliada ao atual desmonte de políticas públicas. A crise econômica agravada pela alta dos preços dos alimentos e pela inflação, junto o aumento da vacinação, têm encorajado mais pessoas a irem às ruas em atos ‘Fora Bolsonaro’. A última manifestação ocorreu no dia 02 de outubro de 2021 e conseguiu reunir diversos setores da sociedade. São mais de 123 pedidos de impeachment apresentados que atribuem crimes de responsabilidade ao Presidente, além de diversas denúncias aos órgãos internacionais e até mesmo no Tribunal de Haia, por crime contra a humanidade e genocídio.

No entanto, entre a queda da sua popularidade e a atual crise de seu governo, Bolsonaro não renuncia às estratégias midiáticas de abuso de poder e autoritarismo. Desse modo, desafiando às Instituições jurídicas, convocou para o dia 07 de setembro, dia da Independência do Brasil, manifestações antidemocráticas na qual o povo inflamado pelo discurso bélico e déspota do Presidente, exaltava a desobediência à justiça através da intervenção militar e contra o STF. Ainda assim, foram inflamadas outras manifestações antidemocráticas com apoio de alguns segmentos dos caminhoneiros que também pretendiam paralisar em massa algumas rodovias do país na mesma data. Porém, temendo represálias, Bolsonaro enviou uma mensagem de áudio pedindo para que pusessem fim ao intento. Como a situação só se agravou, dois dias após os seus ataques à democracia, o Presidente divulgou uma nota em tom de pacificação na qual propõe uma trégua entre as instituições de poder do país. Por ironia do destino ou camufladas alianças eleitorais, a declaração divulgada foi escrita por Michel Temer, ex-presidente do Brasil.

Bolsonaro na ONU – Além de ser o único líder do G20 não vacinado presente na 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu discurso de abertura, Bolsonaro distorceu fatos e disseminou informações falsas. Em um ilusório ataque comunista ao país, o Presidente clamou em nome de Deus em um país laico e afirmou não haver corrupção em seu governo. Com destaque para a defesa do tratamento precoce ineficaz para a COVID-19, se opôs ao passaporte sanitário e camuflou dados sobre o desmatamento da Amazônia, ignorando até mesmo as consequências da pandemia sobre os povos e territórios indígenas. Como se não fosse o suficiente, alguns membros da comitiva do Presidente foram diagnosticados com coronavírus durante a viagem, entre eles, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Ministro este que uma semana antes, suspendeu a estratégia nacional de vacinação de adolescentes, dificultando o fornecimento de doses em vários estados. Ainda assim, por recomendação da Anvisa, os infectados durante a viagem tiveram que cumprir isolamento em Nova Iorque, às custas dos cofres públicos brasileiros.

Fome e Desemprego – A insegurança alimentar e nutricional cresceu exponencialmente no país, em razão da crise provocada pela pandemia e pelo alto índice de desemprego e trabalho informal, colocando o Brasil novamente no mapa da fome. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, realizado no Contexto da Pandemia da COVID-19, 43,4 milhões de brasileiros não possuem alimento suficiente e 19,1 milhões (9% da população) estão passando fome. Um exemplo desse cenário desolador e grave, recentemente divulgado na mídia é a distribuição de resto de carne e ossos para a população faminta e sem qualquer recurso financeiro. Desse modo, se constata novamente, que o projeto político atual dialoga com a necropolítica ao permitir que a fome atinja esses patamares, afetando especialmente a população negra. Enquanto a população passa fome, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, desdenha da alta da inflação e os resultados da sua política econômica se refletem na alta dos preços dos alimentos básicos e do gás de cozinha.

Meio Ambiente: Tese do Marco Temporal e Exoneração de Ricardo Salles – O marco temporal vai na contramão dos direitos dos povos originários brasileiros. Segundo esta tese, as populações indígenas só têm direito as terras que ocupavam antes da promulgação da Constituição de 1988. No entanto, ainda existem povos isolados, povos que foram expulsos de seus territórios e terras adquiridas e reconhecidas como de direitos indígenas após 1988. Logo, a revisão da demarcação de terras indígenas atende os interesses dos setores do agronegócio, de grileiros de terras e garimpeiros, em busca do extrativismo e exploração comercial. Em agosto deste ano, mais de 6 mil representantes de 147 povos originários do país, acamparam em Brasília, para acompanhar o julgamento pelo STF. Apesar de toda mobilização indígena que tomou grandes proporções até mesmo no cenário internacional, o julgamento que estava empatado em 1×1 entre os relatores, foi suspenso no final do mês de setembro sem prazo para retomada. Vale lembrar que mesmo sendo uma tese racista e discriminatória, o que se discute amplamente sobre o Marco Temporal é a questão territorial indígena.

Entre as pautas do meio ambiente, o então Ministro da pasta, Ricardo Salles, tornou-se alvo de investigações por envolvimento em esquema de importação ilegal de madeira entre apoio às mudanças nas regras ambientais. Entre outras acusações, a corrupção e favorecimento das queimadas na Amazônia, configuram-se entre os diversos crimes ambientais de Salles. Logo assim que se tornou réu, Salles pediu para ser afastado do cargo e foi exonerado. A operação deflagrada pelo STF também determinou o afastamento do Presidente do Ibama, Eduardo Bim, por suspeita de irregularidades.

Por fim, este editorial segue o intuito de cumprir a missão de Raça e Igualdade de denunciar as violações dos direitos humanos nos países da América Latina. Nossa atuação no Brasil reconhece que a crise democracia representativa, aliada aos interesses políticos, aprofunda ainda mais as desigualdades socioeconômicas. A circulação de desinformação e de fake news precisam ser combatidas urgentemente, pois estas servem de armas para ampliação de um debate político polarizado, no qual há a criminalização da pobreza aliada aos discursos e violências racistas, LGBTIfóbicas e sexistas. O morticínio pandêmico já custou 600 mil vidas mediante a tantas mortes evitáveis, mas será que mesmo face à tantas denúncias o Brasil capitaneado por Bolsonaro alcançará a lamentável marca de 1 milhão de mortes? Esperamos que não.

(1) Dados de 13 de setembro de 2021

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