Raça e Igualdade denuncia ataques a terreiros no Brasil: não há casos isolados!

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Brasil, 21 de janeiro de 2022 – No Brasil, em 21 de janeiro é comemorado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída através da Lei nº 11.635/2007, em homenagem ao dia do falecimento da Iyalorixá Gildária dos Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, situado na Bahia, […]

Raça e Igualdade denuncia ataques a terreiros no Brasil

Brasil, 21 de janeiro de 2022 – No Brasil, em 21 de janeiro é comemorado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída através da Lei nº 11.635/2007, em homenagem ao dia do falecimento da Iyalorixá Gildária dos Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, situado na Bahia, que foi vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana, e teve o seu terreiro depredado, em 1999. Contudo, apesar deste marco cívico para celebrar a paz e a liberdade religiosa, fundamentado pela Constituição brasileira, lideranças e praticantes de religiões de matriz africana e defensores de direitos humanos, vêm denunciando constantemente a crescente perseguição e discriminação à expressão da sua fé.

Assim, como consequência do racismo estrutural que demoniza a afro-religiosidade e desrespeita as práticas religiosas e culturais da população negra, a intolerância religiosa relacionada aos povos de axé é denominada como racismo religioso. Por isso, o Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), desde 2021, junto à diversas organizações afro-religiosas e de direitos da população negra, coordenam um projeto que visa combater o racismo religioso no Brasil. Esse projeto visa capacitar e fortalecer organizações afro-brasileiras para que possam documentar casos de violência baseados na crença religiosa, prepará-las para ações de litígio estratégico internacional, além de qualificar as entidades para que possam dar apoio jurídico às vítimas de racismo religioso.

Mesmo com a instauração de leis a níveis federais e estaduais, como no caso da Bahia que possui uma lei que agrega o Estatuto da Igualdade Racial ao de Combate à Intolerância Religiosa, através da Lei 13.182/2014; da disponibilidade do Disque 100 para denúncias de casos de violência [1]; e da Lei 10.639/03, que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar nacional; ainda há muito que se pleitear pelos direitos dos povos de terreiro e no enfrentamento do racismo religioso. Somente nos últimos anos se acumulam denúncias de intolerância religiosa contra os povos de terreiro em todo o território nacional, assim como são recorrentes os relatos de quebras e incêndios de terreiros, violência contra lideranças e praticantes, perturbação de cerimônias e liturgias, além da propagação de informações falsas sobre as religiões e o culto do seu sagrado.

Consequentemente, as denúncias por racismo religioso aumentaram 41,2% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019. Segundo os dados, se comparado ao mesmo período de 2018, as denúncias aumentaram 136%. Entre as violências enfrentadas pelos terreiros, pode-se destacar: crimes de ódio, ataques a terreiros, destruição de símbolos religiosos e até mesmo casos de perda de guarda familiar, rechaço de manifestações culturais, discriminações em serviços públicos e privados, como acesso negado em postos de saúde e por motoristas de transportes privados. Assim, no intuito de visibilizar as denúncias que demonstram que ataques a terreiros de umbanda e candomblé [2] não são casos isolados, apresentamos alguns fatos que ocorreram em 2021. Destacamos ainda, com pesar e extrema preocupação, que o ano de 2022 começou com mais um caso brutal que expressa a criminalização e demonização das religiões afro-brasileiras.

2022: Incêndio no terreiro de Salinas

No primeiro dia do ano de 2022, se repetiu mais um episódio de racismo religioso no Brasil, dessa vez contra o Ilê Axé Ayabá Omi – Terreiro das Salinas, fundado há cerca de dois anos e dirigido pelo Babalorixá Lívio Martins, na cidade de São José da Coroa Grande, litoral sul de Pernambuco. O ato criminoso, que incendiou e destruiu o terreiro, compõe o lamentável histórico brasileiro de violência e intolerância contra religiões de matriz africana, seus locais de culto e seus praticantes. O terreiro que existia há três anos, prestava ações sociais à comunidade local e seus representantes denunciaram a violência ocorrida como um ato extremo de racismo religioso.

Diante do horror praticado em São José da Coroa Grande, prestamos nossa solidariedade ao Ilê Axé Ayabá Omi e exigimos investigação profunda e comprometida das autoridades policiais e as devidas providências ao Ministério Público de Pernambuco. É inadmissível que práticas religiosas sejam alvo de ataques e de violência brutal devido à intolerância religiosa. É crucial que a liberdade de crença seja garantida perante a diversidade étnico-racial da população brasileira. Ademais, com o avanço do conservadorismo e de alianças políticas com ideologias neopentecostais, faz-se necessário criação de comitês e acompanhamentos por parte de defensorias e ministérios públicos das denúncias sobre racismo religioso.

Terreiros alvos de ataques em 2021

1 – Em fevereiro de 2021, o babalorixá Natan de Oxaguiã registrou um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), na quarta-feira (10), depois que o pastor Gledson Lima, da Igreja Tenda dos Milagres, gravou um vídeo e postou nas redes sociais destruindo oferendas do Candomblé. No vídeo, ele é gravado quebrando peças sagradas alegando que estaria “quebrando uma maldição” em “nome de Deus e de Jesus”. O pastor também convida as pessoas para frequentarem um culto de sua igreja. O babalorixá relatou que ficou sabendo da destruição na terça-feira (9), e que procurou o pastor, que lhe disse que “ficou incomodado” porque a oferenda “estava próxima da entrada do seu sítio”. Ao refazer o trajeto entre o ponto da oferenda e a entrada da propriedade do pastor verificou-se que a distância era a cerca de meio quilômetro.

2 – De maio a julho de 2021, o terreiro do pai Lindomar, o bairro Anjo da Guarda, em São Luís do Maranhão, foi apedrejado todos os dias em horários diferentes. Segundo o líder, os ataques já vinham acontecendo há vários anos e estavam cada vez mais frequentes. Em julho de 2021 o terreiro Tambor de Mina Dom Miguel, que fica no bairro Anjo da Guarda, na capital, foi alvo de ataques. O local foi invadido e imagens foram todas quebradas. Além disso o telhado foi depredado. Denúncias de discriminação por motivos religiosos têm sido mais frequentes. Segundo a Secretaria de Estado Extraordinária da Igualdade Racial, em apenas dois meses foram recebidas quatro denúncias de ataques a casas de culto afro e pessoas ligadas a religiões de matrizes africanas na Região Metropolitana de São Luís. De acordo com o gestor de Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Sebastião Cardoso, o número de denúncias recebidas nos últimos meses preocupa, porque já é quase o mesmo do que o registrado em um ano todo. Em anos anteriores, a média era de cinco denúncias em 12 meses.

3 – Lideranças e adeptos de religiões de matriz africana se posicionaram contra a atuação da polícia militar nas investigações e buscas por Lázaro Barbosa, acusado de praticar uma chacina que vitimou uma família, em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Os relatos revelaram intolerância religiosa na conduta de policiais militares que invadiram terreiros, arrobaram portas, agrediram um caseiro que cuidava de uma das propriedades, e ainda tiraram fotos de objetos religiosos e os ligaram ao acusado sem qualquer indicativo de que este fosse praticante de qualquer religião de matriz africana, ou fizesse parte de qualquer uma das casas invadidas.

4 – Em 23 de julho de 2021, dois homens invadiram uma cerimônia de umbanda, no município de Coité do Noia, em Alagoas e atiraram em uma mulher. De acordo com a Polícia Militar, as pessoas que participavam da cerimônia religiosa disseram que dois homens desconhecidos apareceram na porta, pedindo para participar do ritual. Ao entrarem, sacaram as armas e deram três tiros. Apenas a mulher foi atingida por dois dos três tiros.

5 – Em agosto de 2021, a Federação dos Cultos Afro-religiosos, Umbanda e Ameríndios do Estado de Rondônia (Fecauber) se posicionou contra a falta de ação da polícia militar do estado em relação aos constantes ataques sofridos pela casa da mãe Tawannah Silva, que já tinha sido invadida, teve objetos sagrados quebrados, comidas e bebidas furtadas e um carro danificado. Três boletins de ocorrência já foram registrados por causa dos furtos e desentendimento entre um vizinho e os membros do terreiro. Nenhum deles foi registrado como crime de intolerância religiosa, e no último boletim feito, segundo Tawannah, a polícia não foi ao local.

6 – Em 02 de agosto de 2021, um terreiro de umbanda no bairro Igaçaba, em Araraquara (SP), foi invadido e depredado, e suas imagens e objetos usados nos rituais religiosos foram quebrados. O caso foi registrado pela Polícia Civil como intolerância religiosa e dano ao patrimônio, e será investigado.

7 – Entre setembro e dezembro de 2021 ao menos três terreiros de umbanda de Sumaré, cidade do interior de São Paulo, a 120 km da capital, foram invadidos e tiveram imagens e acessórios religiosos destruídos.

11 de setembro – Terreiro Oxalá e Iemanjá teve seu portão estourado, objetos e roupas utilizados em rituais religiosos foram quebrados e rasgados, e o relógio medidor de energia foi retirado do poste.

07 de outubro – Casa espiritual Pai João da Guiné teve imagens de santos quebradas e atabaques rasgados.

Em dezembro, em outro terreiro, cujo nome e localização não foram revelados por medo de represálias, houve tentativa de invasão, vandalização da fachada e destruição de toldo externo.

Diante dos contornos sistemáticos da violência e da intolerância contra as religiões de matriz africana surpreendem não somente o tratamento negligente dado aos inúmeros casos pelas autoridades, como também preocupam casos de racismo religioso perpetrados pelo próprio Poder Judiciário. Para fomentar uma cultura de respeito à liberdade religiosa faz-se imperativa a elaboração de projetos educacionais e de políticas afirmativas que promovam diálogo religioso e uma perspectiva de não violência sobre as religiões de matriz africana. Ademais, diante da realidade lamentável que vivemos, apresentamos ao governo brasileiro as seguintes recomendações:

1 – Instar o governo do estado de Pernambuco para que os responsáveis pelo incêndio do Terreiro das Salinas não fiquem impunes.

2 – Criação de mecanismos com viés interseccional e antirracista para coibir e punir atos de racismo religioso perpetrados por particulares e instituições;

3 – Construção de uma agenda antirracista educacional para integrantes do Poder Judiciário, que inclua formação sobre as religiões de matriz africana de forma a prevenir decisões preconceituosas e violadoras de direitos.

 

 

 

 

[1] Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos

[2] As duas tradições religiosas afro-brasileiras mais conhecidas são o candomblé e a umbanda. O candomblé foi formado por negros africanos escravizados, enquanto a umbanda foi criada no Brasil no início do século passado. Existem algumas diferenças entre as duas tradições. Cantos de candomblé são executados em línguas de origem africana, como iorubá ou kimbundo. Na umbanda, são cantadas principalmente em português. Outra diferença é a prática do sacrifício de animais. Embora, em princípio, não haja sacrifício de animais na Umbanda, no Candomblé, a prática é realizada, como forma de circular a energia que anima tudo no mundo: o axé. Mais do que religiões, essas tradições ostentam práticas sociais, culturais e espirituais no continente africano.

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