Transcinema: presença e representatividade trans no audiovisual brasileiro
Brasil, 11 de junho de 2021 – “Eu nunca imaginei viver num país que mais mata travestis e transexuais. Eu nunca imaginei o quão potente pode ser a referência da minha população, atuando dentro e fora das telas. No teatro, produzindo música dentro e fora das rádios, dançando e naturalizando a presença do nosso corpo […]
Brasil, 11 de junho de 2021 – “Eu nunca imaginei viver num país que mais mata travestis e transexuais. Eu nunca imaginei o quão potente pode ser a referência da minha população, atuando dentro e fora das telas. No teatro, produzindo música dentro e fora das rádios, dançando e naturalizando a presença do nosso corpo trans no Brasil”. Com essa alusão à potência dos corpos trans e a realidade brasileira, Wescla Vasconcelos – diretora, roteirista e apresentadora – abre o programa “Transcinema: presença e representatividade trans no audiovisual brasileiro” [1]. Realizado com recursos da lei Aldir Blanc, do Governo do Estado do Rio de Janeiro e da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Governo Federal, o programa também contou com o apoio da rede de cinemas Kinoplex. Escrito em parceria com Biancka Fernandes, o Transcinema surgiu com intuito de visibilizar e debater a presença dos corpos trans no audiovisual.
Com a participação de atrizes como Divina Aloma, Biancka Fernandes e Rebecca Gotto, que narram suas trajetórias artísticas de corpos desobedientes aos gêneros e padrões midiáticos vigentes, todas exaltam a potência disruptiva de suas trangeneridades para o audiovisual brasileiro. Através dos breves relatos de suas histórias, muitas vêm de longa caminhada nessa indústria, as atrizes narram a evolução da representatividade trans além dos estigmas e preconceitos, mostrando que sim, pessoas trans podem e devem ser protagonistas da própria história. A conquista por espaços de representatividade no setor cultural é uma luta de longa caminhada para a população trans, geralmente suas atuações são restritas a papeis coadjuvantes ou suas histórias são engavetadas, seja na frente ou atrás as câmeras e/ou em projetos culturais. Além disso, por conta da transfobia, muitos homens cisgêneros atuam em papeis de pessoas trans, acentuando ainda mais o apagamento e marginalização das mulheres trans e travestis.
Vale lembrar que a profusão das mídias sociais e a maior facilidade ao acesso à Internet é e foi importante para a visibilização da população trans, assim como as pautas identitárias contribuíram para criação de conteúdos audiovisuais que debatam a importância da representatividade trans nos espaços de decisão de poder. E como comunicação é poder, o simbólico construído sobre as pessoas trans precisa constantemente ser questionado, uma vez que os meios de comunicação legitimam e romantizam as narrativas cisheteronormativas, levando a população trans numa eterna disputa pela representatividade além das manchetes sobre violência e morte. Portanto, a representatividade trans também precisa ser contemplada no mercado audiovisual na geração de empregos e como meio de inserção social muito além das telas.
Para contar sobre o projeto ‘Transcinema’, Raça e Igualdade convidou Wescla Vasconcelos, que além de idealizadora do programa, é atriz, pedagoga, mestranda em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (UFF), assessora Parlamentar no gabinete da vereadora Tainá de Paula, no Rio de Janeiro, e também atua como articuladora do Fórum TT-RJ. Wescla também fala sobre a importância dos relatos das atrizes convidadas para o reconhecimento de pessoas trans como referência de si mesmas e como essa evolução é importante para as novas gerações.
Raça e Igualdade – Como surgiu a ideia do programa ‘Transcinema’? Serão quantas edições?
Wescla Vasconcelos – O ‘Transcinema’ surgiu de um sonho que sempre tive como artista, que é tentar produzir um conteúdo que pudesse refletir, de diversas formas, a potência da presença das pessoas trans e travestis no audiovisual, mas também através de outras linguagens artísticas. Em 2020, colaborei na construção de uma programação para Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), com o primeiro festival “Travestilizando”. Esse festival teve como objetivo reunir várias artistas trans de forma a inserí-las nas redes sociais para mostrar seus talentos na época da pandemia. Inclusive, a gente fez várias campanhas virtuais arrecadando fundos para ajudar com alimentos e produtos de higiene básica, diversas artistas trans pelo Brasil. Ainda no meio da pandemia veio o recurso emergencial da lei Aldir Blanc, e eu, como artista, transexual e cearense, percebi a importância de produzir um conteúdo que refletisse a potência da representatividade trans no audiovisual. Assim, junto com a Biancka Fernandes, somos duas artistas trans nordestinas, começamos esse movimento de escrever um projeto baseado nessa questão da representatividade trans no audiovisual brasileiro. Foi a primeira ideia de roteiro que escrevemos juntas, como também foi a primeira produção que dirigi e ao mesmo tempo produzi, junto a outras pessoas envolvidas. Foi assim que surgiu, da quarentena e da necessidade de produzir conteúdo que refletisse a potência da representatividade trans no audiovisual. Até o momento o ‘Transcinema’ teve essa única edição, mas para segundo semestre de 2021, pretendo desenvolver outros conteúdos nessa linha que contemple pessoas trans no audiovisual brasileiro.
R&I – Como roteirista e diretora, quais foram as suas influências e questões para debater essa questão?
WV – As principais influências para a construção do roteiro e direção do programa se baseiam em algumas entrevistas de artistas trans, tanto do Brasil como de outros países. O programa foi baseado, primeiramente, no documentário chamado ‘Disclosure’ que em português se chama ‘Revelação’, disponível na Netflix. Além desse documentário, tive também inspiração no artigo escrito pela Bruna Benevides chamado ’11 filmes sobre ativistas trans que você precisa conhecer’ [2]. O artigo foi escrito no site Medium e está disponível nas redes. É maravilhoso, me inspirou muito a construir o roteiro do programa.
R&I – Como foi a experiência de trazer o relato das atrizes trans e qual a mensagem do ‘Transcinema’ para o público em geral?
WV – O programa foi uma experiência de reunir várias artistas trans de cidades diferentes, tanto a Divina Loma falando um pouco da época de Madame Satã, no Rio de Janeiro, e o que ela passou como artista transexual negra nessa época. Depois veio a Rebecca Gotto que é uma atriz da Baixada Fluminense, pautando a questão do acesso, das oportunidades e da luta pelo respeito ao nome social, especialmente como artista. Teve a Biancka Fernandes pautando um pouco do universo da prostituição, da marginalização das ruas, da poesia, dos saraus, e a importância da poesia como potência da sua arte. Foi uma experiência de conversa entre gerações humanizando o debate de entretenimento, de cinema, de produção de conteúdo, pautando o nosso povo trans e travestis como referência de nós mesmas. Acho que essa é a principal mensagem que o programa ‘Transcinema’ traz no combate ao preconceito e a discriminação.
R&I – Pela sua experiência como militante e como articuladora do Fórum TT-RJ, como o ‘Transcinema’ pode contribuir para a reparar a transfobia num país que mais mata pessoas LGBTI+ no mundo?
WV – Eu percebo que o programa ‘Transcinema’ contribui diretamente com debates que são urgentes na nossa sociedade. A gente vê muito na televisão e na grande mídia, sempre ligando debate de preconceito e discriminação a mortes e assassinatos, marginalizando esses sujeitos transexuais e travestis. Pensando a partir desse lugar de movimento social, a experiência na construção do ‘Transcinema’ foi no sentido de falar de vida. Não podemos, nós pessoas transexuais, reduzir nossas falas e presença na sociedade só debatendo a questão da transfobia, do preconceito e da discriminação. Temos que debater isso tudo e lutar pelo direito a vida dentro desse país que tanto assassina nossos corpos trans e travestis.
Por outro lado, é importante reconhecer o que cada uma de nós faz em vida, porque têm muitas coisas potentes e inspiradoras que servem de referência não só para pessoas trans, mas para o conjunto da sociedade e da população LGBTI+ como um todo. O conteúdo do ‘Transcinema’ contribui para dizer que sempre estivemos em diversos lugares, ocupando diversos espaços da sociedade. O que a sociedade faz é não admitir nossa presença.
R&I – Como você enxerga a caminhada da presença trans no audiovisual brasileiro até os dias de hoje?
WV – No final do programa ‘Transcinema’ eu trago muito uma mensagem que é a de ‘nos deixem atuar, nos deixem cantar, nos deixem dançar, nos deixem jogar todo e qualquer esporte’. A sociedade não pode mais se furtar ao debate sobre os corpos trans, travestis, mercado de trabalho, estudos e oportunidades e universidade, porque nós somos seres humanos e estamos incluídos na sociedade de qualquer forma. Então a gente precisa fomentar para que essa inclusão aconteça de forma mais prática e concreta, por isso eu acho que o audiovisual brasileiro até os dias de hoje vem passando por modificações que eu também fico surpresa. O audiovisual brasileiro vem passando por momentos de transformações que poderiam ter acontecido antes, mas não aconteceram, estão acontecendo nos dias de hoje e refletem um futuro que vai ser de disputa de narrativas, de corpos, de conteúdos sobre representatividade. A questão do programa ‘Transcinema’, pensando essa evolução do audiovisual brasileiro, está muito ligada a nós mesmas, artistas transexuais falando de outras de nós que passaram pelo entretenimento em épocas passadas, comentando seus próprios trabalhos no sentido de referenciá-las e exaltá-las, e ao mesmo tempo deixando mensagens que, por exemplo, eu quando era criança ou adolescente nunca tinha visto um conteúdo como esse. Então, eu acho que crianças e adolescentes transexuais terem acesso a conteúdo como ‘Transcinema’ vai fomentar a ideia de que podem se ver refletidas na TV, no cinema, na arte e em vários outros lugares da sociedade por outras de si mesmas, outras transexuais e travestis.
R&I – Outra infeliz estatística brasileira e que traz a presença trans e travesti no audiovisual é de que o Brasil é o país que mais consome pornografia trans e travesti no mundo, mas o tabu sobre os corpos trans permanecem. Como você enxerga essa possível quebra de paradigma dentro do audiovisual?
WV – A estatística é um dado triste, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis não por fatalidade, eu gosto muito de frisar isso, pois são crimes de ódio com muita brutalidade e bizarrice. Ao mesmo tempo que a gente pensa essa triste estatística, vemos que o consumo de pornografia é muito grande. E além das plataformas digitais, pornografia online, o consumo dos corpos das trans e travestis é muito alto também. As esquinas de prostituição não pararam totalmente nesse período de pandemia e, agora com esse movimento da vacinação das pessoas, o mercado da prostituição volta a se acelerar de certa forma. São questões da sociedade que nunca estiveram tão presentes como estão nos dias de hoje. Precisamos fortalecer esse debate passando por esses fatos de que é o país que mais mata e que mais consome conteúdo pornográfico trans e que contrata serviços de prostituição. São tabus que precisam ser debatidos e, além disso, é preciso pensar alternativas para que isso possa ser algo que não prejudique os direitos e dignidade e a vida dessa comunidade LGBTI+.
O audiovisual pode desmistificar, no sentido que a busca por pornografia e prostituição nas ruas movimenta certas pessoas em busca de questões específicas, que nesse caso é o sexo. E por outro lado, produzir conteúdo com pessoas trans no audiovisual, sejam eles os mais diversos possíveis, ajuda a humanizar com que esses corpos não são corpos destinados somente para conteúdos pornográficos e de prostituição. Os corpos trans também podem ser referências em diversos debates de conteúdo audiovisual, e a naturalização dessa presença na sociedade acaba por desmistificar todo esse tabu. A participação das pessoas trans no audiovisual brasileiro pode ajudar a diminuir tanto a discriminação quanto o preconceito.
R&I – A popular Madame Satã traz uma figura simbólica que teve sempre que fixar seu papel de forte e que enfrenta a todes para poder sobreviver e o cinema perpetuou essa imagem. Qual imagem de pessoas trans precisamos (re)construir para emergir um simbólico descolonizado sobre os corpos trans?
WV – Madame Satã é referenciada no nosso programa, a própria Divina Aloma é uma das poucas artistas trans que tiveram contato com Madame Satã. Infelizmente, recentemente tivemos o falecimento da Rogéria e da Jane di Castro das Divinas Divas, então, a participação da Aloma no programa ‘Transcinema’ é um presente muito grande. É uma herança em vida, ao vivo, comentando sobre Madame Satã, é um dos momentos marcantes do nosso documentário. Por outro lado, temos também a partir de Madame Satã, aquele corpo artístico e visual de enfrentamento ao fascismo e ao preconceito, um corpo trans vulnerabilizado principalmente por ser um corpo trans e negro. E ao mesmo tempo pautando a questão da violência policial, do abuso, que essas instituições de aparelhos ideológicos do Estado, como a polícia e vários outros, tem recriminado e discriminado corpos na nossa sociedade.
Continuação WV: Para pensar numa reconstrução de símbolos e de lutas que possam descolonizar os corpos trans é necessário não só ter pessoas trans atuando, mas pensar como o debate LGBTI+ e o debate trans são estruturantes na sociedade. Além de atuar nos diversos meios de cinema e de arte, acho importante também estarmos por dentro desses processos. É preciso cada vez mais que tenhamos roteiristas, montadoras, produtoras de conteúdo, diretoras criativas trans. Estarmos dentro da estrutura e do funcionamento dessas grandes áreas da sociedade. Porque a partir do momento que a gente fizer isso, vamos ver não só pessoas trans atuando, mas dirigindo, produzindo, roteirizando e fazendo com que tudo isso funcione com a presença desses corpos e talentos profissionais trans e travestis. Isso tudo vai contribuir para naturalizar e decolonizar a experiência dos corpos trans na sociedade. A partir do momento que a gente ainda vê que há uma grande ausência da presença das pessoas trans em vários setores da nossa sociedade, é importante pensar que quando esse acesso for facilitado, essas pessoas vão estar cada vez mais naturalizando suas presenças na sociedade e, com isso, de certa forma, enfraquecendo o preconceito e a discriminação.
De modo a contribuir com a fomentação do setor cultural como reconhecimento e valorização da expressão popular, Raça e Igualdade reconhece que o direito à cultura é essencial para a contribuição da história de um povo e suas tradições. Além disso, a valorização da cultura a partir de uma perspectiva plural está interseccionalmente conectada a luta pelos direitos básicos dos povos. Assim, nosso engajamento na defesa e promoção das pautas LGBTI+, raciais e indígenas visam modificar a estrutura de um mundo pensado para corpos e pessoas únicas. Portanto, reconhecer que a diversidade é um direito fundamental e parabenizamos as produções culturais diversas.
[1] Assista o Programa Transcinema aqui: https://www.instagram.com/p/CPJZ6HfDEaR/