A ONU alerta sobre a persistência do racismo sistêmico no Brasil mesmo com avanços institucionais
Rio de Janeiro, 3 de julho de 2025.– A Relatora Especial das Nações Unidas sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Ashwini K.P., apresentou o relatório oficial de sua visita ao Brasil, no qual reconhece o progresso institucional do país no combate à discriminação racial, mas alerta para a persistência do racismo sistêmico que continua a afetar desproporcionalmente comunidades racializadas e etnicamente marginalizadas.
Durante sua missão oficial, realizada de 5 a 16 de agosto de 2024, a especialista visitou as cidades de Brasília, Salvador, São Luís, São Paulo, Florianópolis e Rio de Janeiro, onde se reuniu com representantes dos governos federal e estadual, do sistema de justiça, da sociedade civil e de organizações internacionais. Ela também ouviu depoimentos de mais de 120 representantes de grupos afrodescendentes, indígenas, quilombolas, ciganos e outros historicamente excluídos.
Reconhecimento institucional do racismo
A Relatora Especial saudou a decisão do Governo brasileiro de reconhecer o racismo enquanto fenômeno estrutural, distanciando-se da noção de “democracia racial”. Ela destacou avanços importantes como a criação do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) em 2023, bem como os esforços para fortalecer o monitoramento das recomendações internacionais por meio do Sistema de Acompanhamento de Recomendações (SIMORE).
No entanto, ela enfatizou que a discriminação racial continua a se manifestar de forma interseccional e generalizada em diversas esferas, afetando severamente os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais de pessoas de ascendência africana, indígenas, quilombolas, romani e outros grupos historicamente excluídos.
Violência e desapropriação territorial
O relatório destaca com particular preocupação a violência estrutural enfrentada por povos indígenas e quilombolas na defesa de seus territórios. Exemplos como os ataques contra o povo Guaraní-Kaiowá no Mato Grosso do Sul e a ocupação das terras da comunidade quilombola Alto do Tororó, na Bahia, ilustram como o racismo sistêmico se expressa na ausência de demarcação de terras, na extração ilegal de recursos e na presença de forças armadas em territórios ancestrais.
Racismo ambiental
A Relatora Especial documentou casos de racismo ambiental, como a pulverização de pesticidas tóxicos em comunidades quilombolas no Maranhão por atores do agronegócio, gerando consequências devastadoras para a saúde e o meio ambiente, bem como o enfraquecimento dos meios de subsistência tradicionais.
“Fiquei chocada ao ouvir de atores do sistema judiciário estadual que o dever de consultar os povos indígenas e as comunidades quilombolas — e de garantir seu consentimento livre, prévio e informado — estava sendo delegado às mesmas empresas com interesses comerciais em projetos extrativos”, acrescentou.
Discriminação de gênero e violência contra mulheres racializadas
O relatório alerta para a prevalência alarmante de feminicídio e violência doméstica no Brasil, que afeta particularmente mulheres afrodescendentes, indígenas e quilombolas. Também destaca a situação de mulheres LGBTI+ racializadas, que enfrentam violência exacerbada por causas interseccionais.
Ela também expressou preocupação com os relatos de acesso limitado ou inexistente aos serviços básicos de saúde para a comunidade lésbica, gay, bissexual, trans e intersexo, bem como casos de racismo e fobia contra essa comunidade por profissionais médicos dentro do sistema de saúde.
Violência policial e acesso à justiça
A especialista denunciou o uso sistemático de força letal por forças policiais em comunidades afrodescendentes, especialmente nas favelas. Essas operações militarizadas geram inúmeras violações de direitos humanos e afetam o cotidiano das pessoas, interrompendo serviços essenciais como educação e saúde.
Ela também expressou preocupação com a ineficácia dos programas federais que protegem os defensores dos direitos humanos, especialmente aqueles que lutam contra o racismo.
Intolerância religiosa e discurso de ódio
Ashwini K.P. também recebeu informações alarmantes sobre ataques a líderes religiosos afro-brasileiros e terreiros, bem como sobre a violência e a impunidade enfrentadas por praticantes de religiões de matriz africana. A Relatora Especial saudou os esforços do Ministério da Igualdade Racial para desenvolver políticas específicas para combater o racismo religioso.
‘’Estou profundamente preocupada com os relatos sobre o alto — e crescente — número de casos de intolerância religiosa e discriminação, frequentemente chamados no Brasil de ‘racismo religioso’, contra pessoas que praticam religiões afro-brasileiras. Esses relatos incluem atos profundamente prejudiciais de racismo cotidiano, como taxistas fechando suas portas para pessoas que usam roupas associadas com as religiões afro-brasileiras, além de restrições ao uso dessas roupas no local de trabalho e bullying contra crianças que praticam essas religiões”, afirma a especialista no relatório.
Em relação ao discurso de ódio, ela alertou sobre o aumento de casos de incitação ao racismo, tanto em espaços físicos quanto online, e destacou o baixo índice de condenações, apesar do alto número de denúncias.
Recomendações principais
A Relatora Especial fez 67 recomendações ao Estado brasileiro, agrupadas em cada uma das áreas temáticas observadas e analisadas. Entre as principais recomendações, destacamos as seguintes:
- Estabelecer uma instituição nacional de direitos humanos de acordo com os Princípios de Paris, com o poder de monitorar e combater a discriminação racial.
- Implementar integralmente as obrigações internacionais relativas à justiça racial, incluindo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
- Garantir a implementação efetiva de planos para desenvolver políticas destinadas a combater o racismo religioso.
- Rejeitar qualquer interpretação jurídica regressiva que limite os direitos territoriais dos povos indígenas.
- Garantir políticas públicas efetivas e inclusivas para as comunidades Quilombolas.
- Fortalecer os mecanismos de proteção para defensores dos direitos humanos e garantir financiamento adequado.
- Tome medidas urgentes contra o racismo religioso e o discurso de ódio, online e offline.
- Desenvolver campanhas de educação e conscientização pública para combater estereótipos negativos sobre as religiões afro-brasileira e islâmica e promover a coexistência pacífica e o respeito a todas as religiões.
Um chamado à ação
O relatório constitui um apelo urgente ao Estado brasileiro para que avance decisivamente na erradicação do racismo sistêmico e na consolidação da igualdade racial. A Relatora Especial demonstra que o progresso institucional deve se traduzir em profundas transformações estruturais que garantam justiça, reparação e dignidade a todas as pessoas, especialmente àquelas historicamente excluídas.
O relatório será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e servirá como ferramenta fundamental para monitorar e garantir a responsabilização quanto às obrigações internacionais do Estado brasileiro no combate ao racismo, à discriminação racial e à intolerância.
A Relatora Especial reafirmou sua disposição de trabalhar com o Estado, a sociedade civil e as comunidades afetadas para avançar em direção a uma sociedade verdadeiramente igualitária, na qual os direitos humanos de todas as pessoas, independentemente da origem racial ou étnica, sejam totalmente respeitados e garantidos.